OUVIR A FORMA
1- Construção e geometria, sim. Mas nada aqui procura o silêncio, a estabilidade, o repouso, nem leis inalteráveis e abstratas de um mundo ideal.
2- Deparamos com um estado de equilíbrio, não há dúvida, mas o sistema construído exibe uma série de perturbações que percebemos como campos de energia. A grande questão é o ritmo: planos, massas, cheios e vazios organizam-se musicalmente; como arquitetura, se quisermos, desde que se considere o quanto há de arquitetural na música; ou: o que na arquitetura é musical.
3- O espaço visual é assimétrico, mas seus ritmos são mantidos sob a medida do plano, que parece resguardar a dinâmica que ele mesmo propicia.
4- Penso em Le Corbusier, precisamente na sua exploração do quadrado e do cubo. Ou ainda, penso no clímax de sua pesquisa, representado por uma casa que ele definiu como “uma caixa no ar”, a Villa Savoye (1929-1931). Ali, a limitação geométrica da caixa empresta seu rigor e simplicidade a uma sintaxe complexa e emocionante; o arquiteto alcançou, “dentro de seu quadrado autoimposto, as qualidades espirais da assimetria, da rotação e da dispersão periférica” (Kenneth Frampton, História crítica da arquitetura moderna). Ou seja, pensada em função do movimento e da luz, a planta apresenta as formas internas à estrutura com enorme ousadia – rampas e escadas em caracol –, enquanto a forma cúbica que as envolve garante a ordem de todo o conjunto. Com a reinterpretação de certos princípios da arte cubista, Le Corbusier aboliu o estatismo – graças à construção de espaços “móveis”, de estruturas transparentes e “abertas” –, geometrizou os elementos formais e organizou rigorosamente o espaço, dando a ele, ao mesmo tempo, uma continuidade dinâmica.
5- Sem recorrer a espirais ou curvas, Luciano Figueiredo alcança um intenso dinamismo “dentro de seu quadrado autoimposto”. A ousadia da criação – sua liberdade – necessita, digamos, de uma medida, do limite que lhe garante justamente a ordem a ser explorada, contestada, sublevada.
6- O plano da tela é cruzado em várias direções. Em termos de desenho, podemos dizer que é cruzado, ou cortado, por linhas. Mas elas são bem mais que isso: são finos volumes de diferentes extensões. Varetas? Sim, e mais que isso: são telas mínimas, tridimensionais, que se projetam sobre e entre planos, enquanto estes, dispostos em diferentes alturas, sobressaem num campo de força instalado – e nunca rompido – pelo quadrado.
7- E, é fundamental atentar para isso, defrontamos com uma inequívoca qualidade artesanal. Não se trata, porém, de algo exterior à criação: o artesanato é intrínseco ao processo. A procura por soluções espaciais e cromáticas deixa-se ver na própria materialidade. Ou ainda, a espacialidade exibe também a técnica do artista-artesão, que manipula, corta, cola, recobre, distende, retesa. Estão resguardadas, portanto, as memórias da natureza e do corpo, e do processo – sua temporalidade –, como verdade formal, como arquitetura que se entrega plenamente ao fazer coincidir o espaço construído e o espaço perceptivo.
8- Vale registrar que Luciano Figueiredo trabalha em situação plana: toda a construção se dá sobre uma grande mesa sobre a qual ele vai descobrindo soluções para os problemas que vão surgindo ali mesmo, após uns poucos estudos prévios. Digamos que o artista projeta antecipadamente os limites do desenho, antevendo um campo de demandas formais que só aparecerão plenamente na longa e concentrada marcha da construção. A planta prévia não define senão o ponto de partida. Nesse sentido, o vago e gasto termo “orgânico” parece justo para tratarmos do trabalho de Luciano Figueiredo, pois seu processo criador desenvolve-se não como obediência ao que é ideado e calculado, mas como permanente estado de busca, pesquisa, observação, como sistema que se transforma a cada lance, a cada escolha, gerando novas hesitações, perplexidades, fazendo-se presente então uma alta exigência física, emocional, psíquica. Compreender que a singularidade da obra chegou a seu termo exige o reconhecimento de uma conclusão não prevista, o que não deixará de surpreender o próprio artista, quando, enfim, o plano pode ser colocado em situação vertical – na parede. Trata-se de um jogo, se se quiser, na medida em que o dispêndio físico e mental vê-se organizado por regras que definem a perda e o ganho, o erro e o acerto, decisões tomadas entre a extrema lucidez e o acaso, o conhecimento objetivo e a intuição.
9- Pode-se dizer que Luciano Figueiredo leva adiante princípios do neoconcretismo, ampliando-o pela experiência, pela pesquisa constante, pelo desejo de invenção; elevando-o ao patamar de uma arte decididamente contemporânea.
10- Direi que esses trabalhos fazem a geometria cantar.
Eucanaã Ferraz