Nem o céu escapa da vida Heloisa Hariadne

17/06/2023 - 22/07/2023

Em diminutos blocos repletos de marcações de tinta e outros resquícios de materiais de ateliê, Heloisa Hariadne guarda discretamente uma série de poemas e aforismos redigidos entre uma imersão e outra na prática pictórica. São anotações fluidas, ora despretensiosas, que promovem respiros e recomeços ao seu fazer, estabelecendo uma curiosa e rítmica complementaridade entre escrita e pintura.

Ter em mãos essas anotações configurou um presente substancial e inadvertido. Uma delicada abertura às elucubrações, aos processos e à constituição do universo imagético de Heloisa Hariadne. Poesia, assim como pintura, é tempo e o coexistir dessas linguagens pressupõe recorrências, ciclos, retornos e reversões. Uma miríade de processos não lineares – nem sempre tangenciados quando entramos em contato com as obras – que podem emergir na ocasião desta exposição.

Em busca de suas imagens, Hariadne transita entre a pintura e a escrita, entre uma tela e outra, entre sua prática artística e seu cotidiano íntimo, fazendo dessa circularidade um estado permanente. Como a artista mesmo afirma, esse estado transpõe as atividades mais mundanas e perpassa questões existenciais e políticas, abarca sua relação com o alimento, o resgate de sua ancestralidade, as inquietações acerca do sistema das artes visuais e o compromisso ético com o seu trabalho e os seus pares.

Há uma clara energia expressa nos ambientes por ela fabulados, envoltos por uma atmosfera fantástica que coaduna sucessivos elementos em suspensão. Não se trata de um mero dado representacional, mas de uma complementaridade entre coisas que habitam uma natureza fecunda e idílica.

Essa energia permite também questionar a hegemonia da visualidade, possibilitando extrair de suas atmosferas qualidades sonoras e cinéticas. Como rascunha Hariadne, “ouvir é ver e ver é sentir”. Suas imagens nos fornecem faíscas para sonhar, ativam nossa percepção sensorial a ponto de indiscernir cores, texturas e aromas. Há algo do sápido, do olfativo e do audível que extravasa o plano e vai além da construção imagética dessas atmosferas.

Como sintetiza a poeta e dramaturga Leda Maria Martins, “a arte é uma dádiva e uma oferenda”. Os banquetes sinestésicos de Hariadne agraciam beleza, exuberância e ousadia sem abdicar do compromisso de que toda oferta é também partilha: de afetos, de memórias e de cicatrizes coloniais.

Refletir sobre a natureza dessa partilha é também desvendar alguns posicionamentos da artista diante da escolha de cada elemento e seu processo de feitura. Em alguns trabalhos recentes, como Antes de encontrar beleza me encontrei no que vejo em você (2023), a figura humana sai de cena. O que poderia parecer a simples supressão de um ou mais elementos, na verdade se trata de importante rearticulação no tratamento pictórico. Os corpos negros, recorrentemente representados por Hariadne, são o prenúncio de suas composições, estruturam o espaço e exercem uma espécie de força centrípeta no plano. São figuras singulares que se valem do emprego do bastão a óleo como meio de conferir luz e contraste às peles. A escolha não é fortuita, busca no processo uma tradução da unicidade e potência desses indivíduos.

A condição desses corpos, ainda que sinérgica a essas atmosferas terrestres e aquáticas, é vista pela própria artista como uma forma de adequação, como se tivessem que se comprimir para ali caberem. Entre a forma que adota para abordar esses corpos e os demais elementos que elenca, Hariadne demarca posicionamentos distintos, o que se faz evidente também pelo emprego majoritário da acrílica em gestos fluidos e delicados, com camadas pouco espessas, que cobrem praticamente toda a superfície de suas telas.

À pluralidade de exemplares da flora e fauna, somam-se instrumentos musicais, adereços, grandes embarcações e personagens que, muitas vezes, parecem oriundos de um conto infantil ou de uma realidade onírica. Sua procedência se atrela muito mais a frações de memória que, ora ou outra, se materializam do que a uma clara demarcação de temporalidades e contextos. “Existem coisas que já nascemos sabendo, as mãos demonstram memória”: é nesse resgate que a artista se funda para construir seu universo.

Dentre os muitos anseios materializados sobre o papel, Hariadne se interroga sobre a validade do processo que passou a empregar desde 2022 em uma residência realizada na comuna de Entrevaux, na França. “Não sei se é a palavra o que serve para falar esteticamente o que somos ou o que podemos vir a ser”. Seus excertos lacunares ensejam pontes entre a imensidão inconsciente da aspiração e do desassossego e a coexistência com o extraordinário. Para adentrar em seus fluxos, acolher sua oferta, é necessário partilhar a escolha de com ela “dançar de costas para o rolo compressor do tempo”.

Priscyla Gomes