Matriz Marcia de Moraes

07/04/2022 - 14/05/2022

Texto crítico: Ana Carolina Ralston

Rios cromáticos correm e se entrelaçam em um fluxo contínuo e pulsante pelo papel. Sua circulação contida acontece entre sulcos vazios que desenham formas beirando a abstração – ou seria a figuração? – e partem de um núcleo celular, cerne do pensamento, que deságua pela folha em uma dinâmica e constante corrente. O desenho ocorre onde a cor se ausenta e a partir dele, transborda. A cena acima norteia a mostra Matriz, de Marcia de Moraes, em cartaz na Galeria Leme, que inaugura um pensamento sequencial da artista sobre a natureza humana, unindo corpo, mente e seu entorno, sem a precisão de quando um se inicia e o outro termina.

Foi a partir de uma única imagem que se desdobraram as diferentes cenas que se apresentam na mostra, como se o episódio pudesse ser visto por distintos ângulos, cortes e aspectos, a fim de ser decodificado por completo, analisado obsessivamente e à exaustão, até que possa, enfim, ser desvendado totalmente e transformado no que se apresenta diante de nós. Se, a princípio, a soturna imagem vegetal foi notada de forma consciente por Marcia de Moraes, tal percepção passou rapidamente ao campo do inconsciente, sendo acessada de múltiplas formas pela artista. A cada fresta aberta, tal lembrança se modifica e é analisada por um outro aspecto inédito. Assim, a matriz deixa que suas diversas facetas sejam produzidas simultaneamente pelo lápis da artista, que esteve por semanas rodeada por elas em seu ateliê, assim como nos encontramos agora na Galeria Leme.

Conforme nascem os veios que detectamos em cada obra, sobressaem-se também formas orgânicas fálicas, que penetram os vazios criados pelo grafite. A movimentação sinuosa de tais linhas nos remete às formas abstrato-figurativas criadas por Georgia O’Keeffe (1887-1986). O desabrochar da flora que tanto inspirou a modernista americana nos leva à natureza que carrega o corpo do próprio ser humano, induzindo nosso olhar ao conteúdo erótico que ela também nos oferece. Pétalas vaginais revelam-se diante do espectador, assim como nas camadas líquidas que Marcia de Moraes cria e que percorrem o caminho da sensualidade feminista produzida pelo seu traço.

Os tentáculos coloridos estão distribuídos pelo glossário de Marcia de Moraes e nos conduzem a outras referências femininas da história da arte, como os seres animalescos de Maria Martins (1894-1973), que buscam através de tais membros a conexão com sua própria liberdade. Estes segmentos criados por Marcia de Moraes tocam de forma antropofágica o papel neste momento, como se engolissem e devolvessem ao público algo com outro significado. Dos fragmentos inquietos propostos por ela em trabalhos anteriores, chega à exposição uma produção repleta de movimentação contínua, que, apesar de cromaticamente explosiva, nos gera calma. Talvez seja assim que a produção da artista se defina, pela contradição que balança como pêndulo entre opostos-complementares. Pelas diversas faces que, por serem tão distintas, acabam por nos ajudar a formatar uma única imagem da qual partem, que é sua verdadeira matriz.