TIAGO SANT’ANA | IRMÃOS DE BARCO
Por Moacir dos Anjos
Em uma trajetória ainda curta, mas já densa, Tiago Sant’Ana vem construindo obra que ata arte e história, criando conhecimento novo sobre fatos supostamente já assentados. Sugere inflexões em narrativas vigentes sobre o passado colonial do Brasil a partir de um campo sensível amplo, valendo-se de performance, fotografia, vídeo, escultura, desenho, instalação e pintura. Escava, em descrições e explicações consagradas do passado, situações e sujeitos postos à margem ou invisibilizados, inscrevendo, em discursos dominantes, violências associadas à escravização de corpos na constituição do mundo moderno. A partir do ponto de vista de um homem brasileiro negro, propõe ajuntamentos novos entre acontecimentos e gentes, entre efeitos e causas, entre o que já ocorreu e o que acontece agora. Para tanto, tem elegido objetos ou tópicos em torno dos quais articula pensamento estético e também ético, posto que qualquer representação do real implica aceites e exclusões de modos de situar-se na vida; implica confirmação de consensos ou abertura de fraturas nas convenções que regulam as formas como os corpos se distribuem nos espaços privados e públicos.
Em trabalhos anteriores, o artista tomou os usos de um objeto do cotidiano ordinário – sapatos – como índices de processos históricos de apagamento social de pessoas negras escravizadas ou, contrariamente, de sua afirmação comunitária quando libertos dessa forma de subjugação brutal de sua força de trabalho. Na exposição que agora apresenta, toma a travessia atlântica entre países diversos da África e o Brasil – rota que sela a submissão de corpos negros a um projeto de poder político e econômico de Portugal – como lugar de elaboração de sua fala. Examina esse trânsito oceânico atravessado por dores e o traduz em locuções sensíveis variadas, oferecendo modos singulares de confrontar violências que não cessam, ainda hoje, de ser ativadas. Associando esses conjuntos de trabalhos diversos de sua trajetória está, como lastro simbólico ou matéria construtiva, o açúcar, alimento e produto exportável que estabeleceu, em bases firmes, a empresa colonial no Brasil em meados do século 16. Produto que primeiro tornou necessária, e possível, a constituição de um tráfico continuado de pessoas negras aprisionadas em pontos diversos da África e escravizadas na outra margem do Atlântico.
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Como forma de atender o crescente mercado consumidor europeu, o cultivo da cana e a produção do açúcar gradualmente assumiram papel central na formação econômica do Brasil, também moldando relações sociais e mesmo formas culturais do país. Expansão que, alcançando parte extensa do território brasileiro, teve expressão maior em Pernambuco e na Bahia, lugar de origem de Tiago Sant’Ana. Já ao final do século 16, havia quase centena e meia de engenhos de açúcar em funcionamento no Brasil, concedendo a Portugal o monopólio internacional do comércio do produto. Tal crescimento requeria um acréscimo constante de mão-de-obra, somente satisfeito com a escravização das populações indígenas, em um primeiro momento, e, logo em seguida, com o afluxo de homens e mulheres africanos transportados para o Brasil. A partir daí, e até meados do século 19, seriam feitas quase 15 mil viagens oceânicas traficando gente entre território africano e terras brasileiras, fazendo desembarcar, na então colônia portuguesa, cerca de 4,8 milhões de pessoas roubadas de suas famílias e de seus lugares de origem.
Essa perda irreparável, tornada irreversível na travessia, é condensada pelo artista na fotografia Fluxo e refluxo. Nela, vê-se um homem negro – de torso nu e de costas para a câmera que o registra – carregando, sobre sua cabeça, a réplica miniaturizada de um navio branco, todo ele feito de açúcar. A proa da embarcação aponta para uma direção – para seu destino histórico, a colônia escravagista e exportadora do produto –, enquanto o rosto não mostrado do homem se volta para a direção oposta – para a terra nativa de todos e todas escravizados que ele aqui representa; terra para a qual, uma vez deixada, jamais poderiam inteiramente retornar. Para além do afastamento físico, o deslocamento forçado pela empresa colonial cancela uma cena primária para onde seria supostamente possível voltar. O desejo do retorno, entendido como a vontade de ter novamente acesso a um conjunto de significantes lembrados de um lugar de origem, é sempre frustrado no contexto da diáspora. Uma vez desembarcado em território onde se vai ser escravizado, é-se obrigado a imediatamente traduzir, em termos novos, referências urdidas na vida pregressa, inclusive a noção de liberdade. Inversamente, contudo, transforma-se, também irrevogavelmente, o meio onde se passa a habitar. Mesmo que fosse materialmente viável voltar à África, não seria mais dada, aos homens e mulheres levados à força de lá, a faculdade de enxergar, com olhos formados no exílio, aquilo que tanto ansiavam ver novamente. A violência colonial sequestra essa possibilidade.
Em outra fotografia presente na exposição – Porto Seguro –, Tiago Sant’Ana exibe uma âncora também feita de açúcar colocada sobre a popa de um barco arruinado. Barco que, na proximidade desse objeto certamente tão doce quanto frágil, simboliza tanto os navios que transportavam aquela mercadoria do Brasil para outros países quanto as embarcações que traziam da África, atulhadas em porões de teto baixo e insalubres, pessoas para serem escravizadas no cultivo e no processamento da cana, gerando riqueza para o colonizador europeu. Nessas viagens com carga humana em navios chamados de tumbeiros, homens e mulheres africanos eram amontoados em espaços sem ventilação e sujeitos a doenças ou mesmo à asfixia antes mesmo do desembarque. Tem-se relatos de que, na chegada ao Brasil, havia alívio extremado dos aprisionados tão somente por não terem morrido na travessia, a despeito da vida sabidamente marcada por violência que os aguardava no país. Assim como a âncora de açúcar derreteria caso fosse lançada à água – perdendo, assim, sua serventia –, alcançar terra firme não significava segurança alguma, mas apenas a frágil manutenção de uma vida continuamente exposta à extinção próxima.
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O Oceano Atlântico é o território onde primeiro se estabelecem as aproximações culturais forçadas entre populações diversas da África e colonizadores europeus. Foi durante as muitas travessias feitas por tumbeiros nesse espaço largo e fluido que se instituíram os mecanismos fundantes da diáspora de populações africanas para as Américas, marcada por abissais violências. E foi sobre essa superfície instável de trânsito que se consolidou, por consequência, o processo de racialização de parte dos habitantes de pele preta do mundo, destituindo-a da humanidade que passava a ser exclusiva de brancos. Por ter sido assim brutal e definitiva, a experiência de ter cruzado esse território oceânico tornou imprescindível, para aqueles obrigados a fazê-la, imaginar modos de existência que lhes permitissem estabelecer laços entre as memórias do que foi perdido e as expectativas sobre o que não se conhecia ainda. Diante do trauma da travessia, fez-se imperativo inventar estratégias de resistência e de manutenção da vida. E é por ter desempenhado papel tão central na constituição de formas novas e híbridas de pertencimento daqueles homens e mulheres trazidos à força da África que esse território de embates foi uma vez chamado, pelo historiador Paul Gilroy, de Atlântico negro.
Em três trabalhos, Tiago Sant’Ana alude à necessidade de ter-se algum guia nessa travessia. Em um deles, Ao sul do Equador, constrói uma rosa-dos-ventos – objeto de orientação náutica – totalmente coberta de açúcar, sinestesicamente reforçando o objetivo último dos deslocamentos daqueles tantos navios entre a África e o Brasil: escravizar pessoas negras para a produção de um produto patrimonialmente valioso no mercado internacional de trocas. Por serem expressão concreta da racionalidade que regia o comércio da época, esses trajetos equiparavam gente e açúcar, ambos reduzidos a mercadorias integrantes de um sistema colonial racista. Uma rosa-dos-ventos, contudo, que, por ser feita de matéria tão frágil, também pode metaforicamente se desfazer com ventos oceânicos fortes, sugerindo que outras orientações de barcos e vidas podem ser estabelecidas, e que não há naturalidade no aprisionamento de corpos.
Já na fotografia Cruzeiro do sul, o artista captura desde o alto a imagem de cinco barcos flutuando na Baía de Todos os Santos, juntos replicando na água o formato da constelação celeste que dá nome ao trabalho. Arranjo espacial de estrelas que somente pode ser visto desde o hemisfério Sul – a partir da África, a partir do Brasil, a partir do oceano que separa e liga seus chãos –, sendo estrangeiro aos navegadores que têm origem na Europa. Modo simbólico de pensar a sujeição do colonizador do Norte ao que é próprio do céu que cobre as terras roubadas do Sul do mundo e o fortalecimento das pessoas escravizadas que ali têm origem. Por fim, escrito sobre imagens de vídeo em preto e branco que registra águas atlânticas, um texto expõe o modo como os aprisionados em navios negreiros se orientavam naquela travessia de abusos. Mesmo no interior dos porões dos barcos, era possível diariamente entrever, através das frestas dos cascos, de onde vinha a luz do sol nascente. Era possível ser todo dia reassegurado que O sol sempre nasce por Guiné, nome dado ao trabalho. Que o mesmo sol que os alcançava nos barcos que os distanciavam da África, havia já iluminado o lugar de onde vinham e aquecido as pessoas próximas forçadamente abandonadas. Uma maneira de assegurar-se de que sua origem seria sempre bússola para a reinvenção de suas vidas. Para resistir à violência.
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Em performance íntima da qual apresenta o enunciado e uma imagem evocativa do ato (Da série “Lisboeta” – capítulo das embarcações), Tiago Sant’Ana se pôs dentro de um barco próximo ao ponto em que o rio Tejo deságua no Oceano Atlântico e quedou-se a ler, repetitivamente e enquanto houvesse luz do sol, nomes de navios negreiros portugueses: Amável donzela, Boa intenção, Brinquedo dos meninos, Caridade, Feliz destino, Feliz dia a pobrezinhos, Graciosa vingativa, Regeneradora. Nomes que contrastam fortemente com a função violenta desempenha por eles e que a fazem parecer ainda mais brutal. Violência que, cometida nessas embarcações contra homens e mulheres negros, se renova, transformada, ao longo de séculos. Não sem oposição e combate. Há narrativas diversas de revoltas a bordo dos tumbeiros, principalmente quando ainda próximo da costa de partida da África, quando eventualmente seria possível nadar de volta à terra. Ocasiões que corpos sujeitados se sublevavam e afirmavam uma comunidade. Não se morre em vida sem lutar. E é a uma dessas lutas que remete um outro trabalho presente na mostra. Uma luta travada em contexto diverso e em um tempo em que a escravidão formal já havia finalmente terminado no Brasil. Mas que evoca a irmandade tecida em meio a abusos sofridos na travessia oceânica.
Em Moldura para João Cândido, o artista pinta o retrato do líder da revolta de marujos brasileiros pretos e pardos contra os frequentes castigos físicos que lhes eram infligidos por oficiais da Marinha de seu país, ocorrida no Rio de Janeiro em novembro de 1910. Punições por motivos banais que incluíam chicotadas sobre os corpos de homens pobres, que naquele instante decidiram não tolerar mais ser tratados como seus antepassados haviam sido. O açoite era, afinal, forma violenta de controle de marinheiros herdada de prática de navegadores portugueses, que assim continham africanos trazidos à força ao Brasil por três séculos para serem escravizados. Depois da vitória temporária da Revolta da Chibata, como ficou conhecido o movimento rebelde, os marinheiros que estavam à frente da mobilização foram presos, acusados de conspiração e torturados. Vinte deles morreram em consequência dessa brutal reação do Estado e apenas dois sobreviveram. Um deles foi João Cândido, logo transformado em herói popular e apelidado por parte da imprensa de Almirante Negro, como ficou a partir daí conhecido. Na moldura que envolve o retrato pintado, Tiago Sant’Ana inscreve signos relacionados à prática da navegação: o sol, a lua, um sextante e um leme. Uma homenagem àqueles que, por tanto tempo, lutaram e lutam para conter a violência absoluta imposta a corpos negros trazidos ao Brasil. Dentro e fora de barcos. Luta travada no meio do Oceano Atlântico ou na terra firme do país que construíram com suas mãos e com sua capacidade de inventar.
Moacir dos Anjos é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. Foi curador da 29ª Bienal de São Paulo (2010) e das mostras Cães sem Plumas (2014), A Queda do Céu (2015), Emergência (2017), Quem não luta tá morto. Arte democracia utopia (2018) e Educação pela pedra (2019). É autor dos livros Local/Global. Arte em Trânsito (2005), ArteBra Crítica (2010) e Contraditório. Arte, Globalização e Pertencimento (2017).