Encontro Mônica Barbosa e Rayana Rayo

06/05/2023 - 10/06/2023

“Os movimentos internacionais de mulheres têm construído aquilo que se pode chamar de “experiência das mulheres”. Essa experiência é tanto uma ficção quanto um fato do tipo mais crucial, político. A libertação depende da construção da consciência da opressão, depende de sua imaginativa apreensão e, portanto, da consciência e da apreensão da possibilidade.”[1]

Manifesto Ciborgue, Donna Haraway

 

Com obras inéditas, comissionadas para o projeto, Mônica Barbosa e Rayana Rayo, apresentam um universo onírico profundo, com pinturas de variadas dimensões que transitam entre o orgânico e o industrial, o figurativo e o abstrato, em uma composição que nos guia por diversas construções subjetivas.

Mônica Barbosa tem a sua produção vinculada a uma pesquisa que começa com questionamentos sobre acessibilidade, trânsito e territorialidade e chega em um campo fértil do corpo, principalmente da mulher, em constante desconstrução. Tendo vivido em diversas cidades pelo Brasil, a artista tem o deslocamento como uma sensação íntima, o impulso do movimento migratório que atravessa o país direciona grande parte de sua busca. Em uma de nossas conversas a artista relatou, “Dentro do peito, a casa, que me faz seguir”. Nos últimos oito anos sua prática desembocou na pintura, gesto ancestral da sua terra de origem, das pinturas rupestres do Piauí, do urucum vermelho na pedra. Há uma relação profunda entre a pintura ancestral e a migração ancestral nesse trabalho em que vemos paisagens internas, corpos em construção, mergulho e nascimento.

Rayana Rayo firma sua produção em pintura a partir de conversas e relações, o dentro e o fora, também elaborados por Mônica, estão aqui sendo usados como dispositivos analíticos internos. A série de obras apresentadas nesta exposição são criadas em uma conversa constante da artista com a própria mãe, sobre aproximação e distanciamento, enquanto articula em sua vida uma jornada tripla entre o trabalho, a identidade e a maternidade. Sombras, encontros e aprendizados nos levam a perguntas sobre, o que existe dentro e fora do corpo? O que o corpo gera? Em tela, a artista conversa com ela mesma para poder fazer escolhas dentro da pintura, a partir da intuição, seguindo outros campos e fluxos de pensamento. Tem um fio que conduz e conta uma história pelas obras, criando um espaço seguro de troca e comunicação.

Um olhar atento, percebe nas obras de ambas as artistas um encontro entre humano, animal e mecânico. Essa relação, apresenta outras opções de perspectivas de mundos: um mundo onírico, orgânico, relacional, interno, que fortalece a sensação da metamorfose do corpo, do indivíduo com a tecnologia, do corpo com a terra.

Somos seres híbridos e porosos, o corpo é central para as obras de ambas as artistas, mas um corpo que amplia as definições do mesmo, escapando de enquadramentos e estruturas rígidas que não nos suportam. Em seu texto, Re-encantando o mundo, a autora Silvia Federici nos conta que é necessário “reconectar com o que o capitalismo separou: nossa relação com a natureza, com os outros e com nossos corpos, permitindo que a gente não só escape da pulsão gravitacional do capitalismo como também recuperemos o senso de inteireza em nossas vidas.”[2]

Perceber o corpo da mulher como fragmentado dentro das estruturas sociais em que vivemos é quase compulsório. A perspectiva das obras de Mônica e Rayana contraem essa narrativa a ponto do corpo se apresentar desidentificado e totalmente expandido. Temos relações complexas com o mundo, com os outros, com os nossos corpos, aqui as artistas retomam as narrativas em uma prática potente de reflexão sobre si mesmas e sobre mundos possíveis.

Essa escuta profunda e íntima nos conta que não somos o que esperam que sejamos, como nos explica Donna Haraway em seu texto Manifesto Ciborgue, “a existência de uma dolorosa fragmentação entre as feministas (para não dizer ‘entre as mulheres’), ao longo de cada fissura possível, tem feito com que o conceito de mulher se torne escorregadio: ele acaba funcionando como uma desculpa para a matriz das dominações que as mulheres exercem umas sobre as outras.” Não somos e nem seremos o que esperam que sejamos, nossas relações se entrelaçam e complexificam de formas inesperadas e únicas.

As subjetividades apresentadas nas obras de Mônica e Rayana são de ordem única e particular, estruturas externas não vão encerrar a força do corpo em movimento, em trânsito, em relação, a força da maternidade singular em ação, o sujeito que é máquina e natureza ao mesmo tempo no rodopio caleidoscópico da vida cotidiana.

 

Catarina Duncan

 

[1] HARAWAY, Donna. A cyborg manifesto: science, technology, and socialist feminism in the late twentieth century. In: HARAWAY, Donna. Simians, cyborgs, and women: the reinvention of nature. New York, Routledge, 1985, p. 149-181.

[2] FEDERICI, Silvia. Re-enchanting the world: Feminism and the Politics of the Commons. 1a edição. Canada: PM Press/Kairos, 2018.