Falar ou escrever sobre a obra de Rodrigo Bivar (1981, nasceu em Brasília, vive e trabalha em São Paulo) é trazer para a superfície palavras, signos e temas que vão muito além do repertório que se tem como hábito nos debates das artes visuais ou na mídia que a divulga. E tal indício torna mais especulativa e imaginativa a identificação de um universo poético, ao mesmo tempo plástico e literário, ligado à espontaneidade cotidiana da prosa na esfera pública em permanente confronto com o mundo.
Talvez esteja nesse distanciamento de um debate vicioso um bom ponto para observarmos o corpo de trabalhos do artista, especialmente esse novo conjunto de pinturas gestadas após o tempo de suspensão da presença física que vivenciamos ao longo de mais de dois anos de pandemia. Postas em diálogo no espaço expositivo, essas pinturas presentificam uma condição mais expansiva do trabalho. Elas nos fazem tecer alguns signos na confabulação de narrativas que podem ser construídas ao observarmos pintura por pintura ou mesmo no fio que concatena cada uma delas em uma grande teia especular do que o cotidiano nos apresenta.
Basta, para isso, escolher uma dessas grandes telas e divagar. Escolho, a título de exemplo, o trabalho Peixaria (2023) e me ponho a perguntar: o que este casal irá fazer? Farão um almoço de domingo ou será apenas a escolha para uma refeição caseira no meio de semana? Será que existiu por parte do artista algum critério para que suas presenças tenham despertado o desejo de encená-los? E por qual motivo o registro acontece pelas costas, de banda, em um movimento impreciso de recebimento de uma sacola com peixes?
Diante de uma série de perguntas que se colocam, a depender para qual trabalho olhamos, uma anterior nos parece imprescindível: essas cenas capturadas foram imaginadas em sua integralidade ou o artista reproduziu um momento que havia registrado no seu dia? Respondo: Bivar nesses últimos tempos têm recorrido à fotografia diária, como um registro de refúgio do mundo ordinário, observando em fluxo contínuo a vida que o circunscreve. Arrisco dizer que é quase como um registro de solidão do artista, distante do imediatismo forjado da internet em tempos de redes sociais. Ele parece criar pequenas obsessões por momentos que de maneira geral nos passam desapercebidos, sem qualquer importância aparente. É sempre a tentativa de capturar o outro, provavelmente aquele que já só nos observa mediados por um avatar em rede social. É uma atividade de registro, no entanto, posta diametralmente oposta à intencionalidade do que nos habituamos a classificar com o palavrão “instagramável”. Não é, de modo algum, um repertório imagético que confabula com as novas e boas práticas da arte contemporânea ou da tão onipotente força do fotojornalismo. Nada isso. É apenas e tão somente a força expressiva de uma cena plástica das mais simplórias para as quais o nosso olhar não dá mais atenção.
Nesse ponto está uma das inúmeras interjeições de interesse que permearam nossas conversas nos últimos meses: o desejo por recuperar para nossas vistas e interlocução a trivialidade do que vemos no cinema, aquele de noventa minutos que melhor tangenciam nossas vidas burocráticas de sobrevivência, das quais tentamos fugir constantemente. Nesse caso, podemos mencionar a filmografia do realizador finlandês Aki Kaurismäki: um artista que sempre trabalhou com condições desinteressantes de luz, pratos de comida empobrecidos, personagens sem longas práticas discursivas estendidas ou magnânimas, atuações dilacerantes que não se curvam à expressividade teatral, a representação das zonas degradantes ou desinteressantes de locais como a periferia de Londres ou de Helsinki. Tudo isso não deixa seu cinema mais ou menos humano, só que nos confronta constrangedoramente com a realidade factível do cotidiano – da perda de um emprego às agruras de um novo amor. Poderíamos falar de tantas outras iniciativas cinematográficas, como as narrativas de Jim Jarmusch ou a pesquisa visual e sociopolítica de Chantal Akerman. E ainda, ao falarmos das novidades cinematográficas, porque não a delicadeza de Aftersun, uma pérola fílmica da jovem Charlotte Wells?
Foi com essa tão longa e espontânea troca de referências que me ocorreu a ideia de uma “pintura de cena”. Vejo a prática pictórica de Rodrigo como um exercício de cena, vinculado a um enredo maior sobre o qual não temos qualquer controle, nem mesmo sabemos em que lugar entre o documento e a ficção ele está. Ao contrário do que é visto em vários momentos da história da pintura, não há qualquer indício de representação de uma passagem histórica ou mesmo de denúncia de uma situação social. Toda e qualquer ação representada recorre ao cabedal de referências que todos nós guardamos na vivência do dia a dia. Ou seja, não há novidade!
Parece não ser uma pintura com desejo de legitimar a grande história e a estética de um tempo. O que ela representa tem mais relação íntima com o espontâneo do real. Cada uma das pessoas anônimas representadas está despida de altivez ou qualquer sinal de imodéstia. A pintura configura o olhar para o homem comum, aquela pessoa comum e anônima, que cruzamos todos os dias na rua. E essa representação da personagem nunca é dada pela frontalidade do que se observa, tendo em vista a própria tradição do retrato. O que se vê é algo traçado de soslaio pela pintura.
O próprio movimento das pinceladas dá indícios de um gestual que escapa do que se observa na retidão frontal ou de um enquadramento cinematográfico incomum; quase como um fragmento de cena oblíquo. É o que podemos reparar na moça em trajes de banho em um areal de praia qualquer, conforme a pintura Areia (2023) ou mesmo o senhor de pé lendo um panfleto enquanto segura os seus dois cachorros em uma cena em praça pública qualquer, como traçado em Panfleto (2023). Outras, sem qualquer indício de drama e quase sempre em um possível movimento diagonal, denotam uma passagem transitória; um instante de pausa para um eventual trânsito entre dois pontos; o descanso intervalar diante de uma jornada de trabalho; a mudança de ambiente ou uma espera transitória para o embarque num táxi ou uber. Essas são as cenas que vemos em Represa (2024), Vaso (2023), Cigarro no terraço (2023) e Enquanto isso (2023). Todas elas são trabalhos pictóricos que emulam ou mantém proximidade com a própria escala humana do espectador.
Em amplitude, a meu ver, a pintura de Bivar é de poucas e raras palavras. Reitera-se que não há uma clareza de representação que possa ser traduzida em discurso textual premeditado ou induzido pelo calor dos temas que parecem circunscrever e criar uma camada de proteção e valoração da arte. Me arrisco a dizer que cada uma dessas pinturas, isoladas ou interdependentes em um espaço expositivo, podem induzir em texto ou discurso ao uso das figuras de linguagem, na medida em que vamos atribuindo qualidades retóricas às situações pintadas. Portanto, reside nesse quesito uma qualidade literária da obra plástica.
A literatura visual de Rodrigo e seu circuito de temas são a expressão máxima do que se insere de mais ordinário no dia e na noite de cada um, iluminam também os tempos e contratempos que nos fazem percorrer a vida. Há um senso destemido de colocar em confronto, em uma pauta momentânea com quem a observa, aquilo que muitas vezes, nos dias de hoje, seriam os não assuntos. Ironicamente são aqueles que nos fazem sobreviver. Melhor, não é um circuito, mas uma praça de temas que se põem em diálogo e confronto direto no espaço da galeria.
Aliás, é intencional essa vontade de presentificar a esfera pública na forma de uma grande praça com bancos, caminhos e outros ruídos que dignificam a própria ideia de praça, o mais conhecido resquício de espaço público que temos na cidade contemporânea. É nesse território de negociação da primazia do público que compõe o cenário de cada enquadramento apresentado em suas 13 pinturas da exposição. E tal ponto reverbera novamente quando olhamos e circulamos pelo espaço da Galeria Leme. Destacaria uma pintura de grande dimensão dessa exposição, o trabalho Vitamina D (2023), em que se vê uma senhora sentada ao ar livre, tomando sol. Trata-se de um dos espaços públicos que melhor espelham uma convivência lúdica negociada: a praia por sobre um deck de madeira projetado por Lina Bo Bardi, no contexto do Sesc Pompeia.
Por consequência, percebe-se em cada trabalho que o território da ação é a rua, mas o território dos sentidos é o próprio corpo de cada um que ali transita, assim como cada um dos personagens sugeridos pelo artista em suas pinturas de cena oblíquas. Em tantas idas e vindas nas trocas com Rodrigo Bivar, não poderia deixar de sublinhar alguns pontos de contato poéticos entre a pintura dele e o imaginário romanceado por um dos grandes escritores norte-americanos da segunda metade do século XX, o Philip Roth. De maneira mais genérica, Roth foi um autor capaz de escancarar personagens que, em muitos casos, são despidos até que se alcance suas reais fragilidades, fraquezas e desvios de caráter. É como se já não mais houvesse espaço para o extraordinário.
Desse modo, naquele clássico papo de botequim com o artista, me veio uma aproximação evidente com o romance “Homem Comum” de Roth. Basicamente, ao longo de suas quase cento e cinquenta páginas, o autor constrói a história de vida de um americano médio que percorreu os anos em busca de uma certa promessa de paz e felicidades momentâneas, norteado pelos desejos mais mundanos. Assim como este personagem principal, sua ficção pode ser aproximada às supostas histórias de cada um dos personagens que Bivar nos presenteia. Nesse sentido, o ponto de confluência está na força última vitalidade de cada pessoa nessa vida terrena: a sobrevivência diante da escuridão da morte que está por vir. Cada um de seus personagens representados ensejam a vida de uma pessoa comum, agregada aos seus descaminhos. É nessa corredeira face a face com os fatos do cotidiano que mora o prazer e o terrível, a dor e a beleza, o certo e o errado. Por conseguinte, talvez o que mais nos incomode ou nos seduza na pintura do artista é justamente esse estranho familiar que se sucede à observação de cada cena da qual não sabemos o desenrolar, mas que já imaginamos termos visto.
* * *
Basta quase nada
E eu já quase não gosto
E já nem gosto do modo que de repente
Você foi olhada por nós[1]
Caetano Veloso, em “Da maior importância”
De certo, o que Rodrigo Bivar nos propõe enquanto pintura vai em caminho oposto ao espetáculo das imagens e legendas literais das redes sociais. Estamos cada vez mais adestrados a normalizar o descartável do consumo como norma, ou melhor, como essência. E isso está impregnado em todas as mídias que acessamos cotidianamente. A própria imprensa já vem há mais de uma década caçando público e cliques, dando destaque rasteiro ao jornalismo das celebridades e afins. Um caso específico, uma espécie de divisor de águas da nossa imprensa, parece ser o primeiro elo entre Caetano Veloso e a pintura de Bivar.
“Caetano Veloso Passeia pelo Leblon e Estaciona o Carro”[2]. Foi com esse título longuíssimo que uma jornalista publicou uma matéria no portal Terra, no início de março de 2011. Nela, é publicizada apenas uma sequência de imagens de Caetano Veloso atravessando uma rua do Rio de Janeiro, logo após o carnaval. Há na foto principal um olhar ou mesmo uma presença de soslaio, de quem está olhando para os lados e certificando-se que aquele é o momento certo para atravessar a rua. Não há nas legendas ou nas imagens qualquer informação para além da literalidade posta. Essa publicação desde então tornou-se um caso curioso da indústria de notícias que tomou conta dessa ideia publicitária e não jornalística de “produção de conteúdo”. Não importa o que seja: o que vale é ativar um sem-número de espectadores, cada um em sua solitária vida de telas.
Em visita ao ateliê, não pude me conter quando me dei conta de tal imagem ao observar a obra Enquanto isso (2023), uma cena deveras parecida com a que o paparazzi vendeu ao portal de notícias em um pós-carnaval. Apesar dos risos que compartilhamos ao nos darmos conta de tal similaridade, nos pareceu importante sublinhar esse espelhamento do ordinário, quase circular entre o flagra de Veloso, a legenda que reitera a imagem, a foto que Bivar registrou espontaneamente na rua e a pintura construída posteriormente. É como se constatássemos um ciclo vicioso, o mesmo que nos alimenta ordinariamente em nossos dias. E se olhássemos para essa semelhança e fizéssemos um exercício de ativação dessa cena que visualizamos em um passado recente? Claro, encontraríamos espantosas semelhanças. O único ponto real de divergência é a presença incontável de pessoas anônimas que passam por essa situação.
É nessa observação do outro que encontramos elementos confortantes e perturbadores em um só tempo. Há em curso uma permanente negociação com o outro quando não estamos no repouso, até o sonho é dominado por essa instância dialógica com o outro. Coincidentemente, esse é o monólogo da canção “Da maior importância”, composta por Caetano nos idos dos anos 1970. A canção é melodia, mas é também texto literário. Texto esse que pode ser também uma passagem cinematográfica. E por que não pintura de um momento? Supõe-se que a canção discorra em tom reflexivo acerca de um flerte ou uma troca vivencial entre dois personagens. É também essa troca ou flerte que nos captura quando olhamos para cada uma dessas pinturas.
Em certo sentido, o elã final dessa mostra – que irremediavelmente conecta toda a gente anônima retratada de forma factual, de passagem ou aparentemente displicente – é que todas essas pessoas, assim como nós que as observamos, estão em um jogo contínuo de sobrevivência, quase que exclusivamente solitário, lidando cada qual com o seu próprio corpo e presença. Como dissemos anteriormente, é essa experiência comum, quase frugal, que estamos diariamente contornando com subterfúgios mirabolantes e pulsões de vida renovados. Como descreveu Philip Roth ao final da saga em vida de seu “Homem Comum”: ele, personagem, “deixou de ser, libertou-se do ser sem querer se dar conta disso. Tal como ele temia desde o início”[3]. Afinal, todo o resto é da menor importância.
Diego Matos, janeiro e fevereiro de 2024
[1] Versos da terceira parte da primeira longa estrofe da canção “Da maior importância”, de Caetano Veloso, gravada inicialmente por Gal Costa em seu álbum “Índia” (1973), um marco da música brasileira contemporânea. O próprio músico veio a gravar a canção em seu álbum “Qualquer Coisa” (1975), imprimindo uma outra cadência ao monólogo reflexivo dessa canção. A referência usada para a transcrição do trecho foi a edição da letra, revisada pelo próprio Caetano, que consta na publicação: VELOSO, Caetano. Letras/ Caetano Veloso; organização Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. p. 369.
[2] Para entender nuances dessa passagem inusitada do jornalismo brasileiro, vale a leitura do texto publicado pela autora dez anos depois na revista Piauí: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/eu-existo/#
[3] Trecho extraído de uma passagem do romance: ROTH, Philip. Homem Comum. São Paulo: Companhia das letras, 2007. p. 131.