Autorretrato em Branco sobre Preto Jaime Lauriano

03/02/2015 - 14/03/2015

Uma História narrada em primeira pessoa do singular.

Uma história narrada em primeira pessoa do singular pressupõe um fato vivido ou uma história passada ao narrador. Este, por sua vez, nos conta e, através de sua oralidade performativa, reconstitui uma situação na imaginação do ouvinte. Uma História narrada em primeira pessoa pressupõe uma experiência do passar do tempo, uma escuta atenta ao eco do passado no presente, vivida na pele do narrador, algo que com dificuldade se aparta dele. É através da oralidade que mitologias milenares são passadas e se atualizam em seus narradores sagrados – Pais de Santo, Mães de Santo, Xamãs, entre outros.

A linguagem operou um importante papel no processo de colonização nas Américas: primeiro, misturavam-se homens e mulheres provenientes de diferentes nações africanas, para que não se comunicassem; segundo, as línguas neo-latinas foram impostas como línguas e culturas mandatórias nessa situação de diáspora. Assim, o colonialismo vai além da subordinação material e física do sujeito, fornecendo ao colonizado os meios de comunicação e expressão – trata-se do colonialismo epistemológico . No primeiro capítulo do livro Pele Negra, Máscaras Brancas, o psiquiatra martinicano Frantz Fanon (1925-1961), analisa a relação do negro colonizado com a língua do branco colonizador, para ele “(…) falar é existir absolutamente para o outro. (…) é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização” . A linguagem não apenas transmite uma informação, mas detém de um contingente quase espiritual sobre a cultura pela qual é usada – intervir na linguagem é intervir na subjetividade de um povo. Assim, os jesuítas logo trataram de apropriar-se da palavra Tupanasu (derivado de Tupã, significa “Deus todo poderoso”) para falar do deus cristão aos tupinambás . Soa como tupi, significa como o português.

Assim, processo histórico de tensões que pôs em contato religiões de matriz africana com o catolicismo é resultado de uma situação muito particular, na qual homens e mulheres apartados de sua terra, tiveram de encontrar alguma forma de manter contato com o espiritual sob processo de colonização. Hoje, os terreiros de Umbanda e as roças de Candomblé mantém viva uma forma de entender o mundo, transmitida e transformada por diferentes agentes e em diferentes regiões do país, narrando uma História de resistência. Se pressupõe também que as narrativas orais se modifiquem com o tempo, assim como na língua incrustam-se novas palavras, por vezes, sintomas de outros processos de colonização.

Em Autorretrato em Branco sobre Preto, não há uma história narrada de forma oral, ou uma proposta de reescrita da História tal qual nos é contada. A narração está em emprestar o corpo e a representação de uma história a partir do sujeito, para reelaboração de uma História atual a partir de mim. Afinal, o autorretrato é uma testemunha do sujeito em determinado tempo e lugar, nele vemos além de sua fisionomia, mas nas escolhas formais e compositivas, como o autor cria-se para o outro (e aqui retomo Fanon: “falar é existir absolutamente para o outro”).

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“Falei de contato.

Entre colonizador e colonizado, só há lugar para o trabalho forçado, a intimidação, a pressão, a polícia, o imposto, o roubo, a violação, as culturas obrigatórias, o desprezo, a desconfiança, a arrogância, a suficiência, a grosseria, as elites descerebradas, as massas aviltadas.

Nenhum contato humano, mas relações de dominação e de submissão que transformam o homem colonizado em criado, ajudante, comitre, chicote e o homem indígena em instrumento de produção.
É a minha vez de enunciar uma equação: colonização = coisificação.

Ouço a tempestade. Falam-se de progresso, de “realizações”, de doenças curadas, de níveis de vida elevados acima de si próprios.

Eu, eu falo de sociedades esvaziadas de si próprias, de culturas espezinhadas, de instituições minadas, de terras confiscadas, de religiões assasinadas, de magnificiências artísticas aniquilidas, de extraordinárias possibilidades suprimidas.”

(CESAIRE, Aimé, Discurso sobre a colonização, p. 25)

Esta exposição é também uma pergunta a cerca das formas de elaboração de traumas históricos. E aqui me refiro à toda e qualquer forma de dominação derivada do Brasil colônia e que persistem ainda hoje, apenas performada por agentes atualizados. De que forma o aparelho cultural elabora esse trauma? Qual o papel dos Museus e instituições culturais dentro desse sistema? Glorificar as diversas culturas que aqui desembarcaram como signos exóticos de um passado distante ou se propor a investigar, desenterrar documentos, arquivos, pesquisas, diálogos que elaborem uma história da dominação para além de algemas expostas em uma vitrine, como atestados de algo que passou e não existe mais? Como o discurso meritocrático se retroalimenta do discurso da mestiçagem e vice-versa? Como a história é performada e atualizada em mitos e rituais? Como cruzam-se as lógicas da propriedade privada e da dessubjetivação dos corpos?

No trabalho Vocês nunca serão donos de seus corpos, as frases gravadas em placas de madeira – essas, que antes sinalizavam engenhos de açúcar, hoje figuram nas entradas de fazendas no interior da cidade – são proferidas pelos novos capitães do mato, a Polícia Militar. Estas frases nos remetem também à indignação dos fazendeiros escravistas que declaravam que a assinatura da Lei Áurea feria o “direito do homem sobre o homem” .

Em Tratado #2, por sua vez, uma tora de madeira de lei* descansa passivamente sobre um espelho destroçado, partido em vários cacos, em referência ao Tratado de Tordesilhas, que veio para regular a disputa pela propriedade das terras do Novo Mundo. Nestes fragmentos, vemos nossa imagem desmembrada sem tentativa de reparo. A tora permanece sobre os reflexos partidos como quem afirma que “aqui não se mexe, é o meu domínio”, protegendo um território de peças violentamente separadas. Já em Nessa Terra, Em Se Plantando, Tudo Dá, frase retirada da carta de Pero Vaz de Caminha, que relata a lucrativa fertilidade da Ilha de Santa Cruz, um pequeno espécime de Pau-Brasil cresce dentro de um viveiro. Exposto como objeto de museu – lugar que comporta a morte por excelência – esta simbólica planta cresce com a promessa de destruir as estruturas que a aprisionam. Desta vez, é a ciência que serve como instrumento de dominação: destrinchar para entender, aprisionar para observar, utilizar-se dela para produzir lucro e verdades absolutas (não podemos nos esquecer dos discursos de eugenia).

As formas pelas quais hoje revemos e apresentamos certos aspectos de nossa história são ainda revistos em Suplício: dispostos sobre um mobiliário de museu, elementos de tortura e apreensão de jovens negros realizadas pela polícia militar ou por “justiceiros” substituem pesadas algemas em uma atualização inquietante da colonização. Traumas não revistos foram museificados, reliquizados, e tidos como passado, como “etapa necessária para o desenvolvimento” (como se refere Cesaire), porém permanecem como feridas abertas nas quais, com frequência, um punhado de salmoura e limão é jogado.

Isabella Rjeille
São Paulo, 22 de dezembro de 2014

Bibliografia
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. (1952) Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
VAINFAS, Ronaldo. Rituais indígenas que não se apagam: a catequisação frustrada. Disponível em: http://diversitas.fflch.usp.br/node/2202 acessado em 17/12/2014, 12:12.
CÉSAIRE, Aimé,. Discurso sobre o colonialismo. (1978) Tradução de Anísio Garcez Homem. Florianópolis: Editora Letras Contemporâneas, 2010