Jaime Lauriano. Assentamento, 2017.
(ao meu amor)
A exposição Assentamento, segunda individual de Jaime Lauriano na Galeria Leme, apresenta 8 trabalhos que dão prosseguimento à sua pesquisa sobre as vivas heranças da colonização no Brasil, ao redor de um eixo formado entre a violência e a resistência. Nos últimos meses, justamente enquanto a crise política nacional fortalece uma bancada parlamentar que defende os interesses dos grandes produtores rurais contra os direitos dos trabalhadores, o artista voltou grande parte de seu interesse e de sua produção para as questões agrárias no país.
O título da mostra faz referência aos assentamentos para trabalhadores sem-terra do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, fundamental instrumento federal para a luta por terra no Brasil) ao mesmo tempo em que alude a um gesto sagrado das religiões de matriz africana.
No candomblé, um dos significados de “assentar” é “plantar o axé”, ou seja, tornar o chão do terreiro um território sagrado, vivo, extensão direta de todos os membros da comunidade, de onde o axé vem em forma de força e para onde o axé vai em forma de sacrifício. Em um certo momento do processo de assentamento, os membros do terreiro colaboram de forma a “plantar” parte de suas energias vitais no chão, passando assim a serem todos responsáveis pelo local. O assentamento é, mais comumente, a consagração de um objeto construído e tratado a partir de conhecimentos secretos e ancestrais para representar materialmente um orixá. Do ponto de vista religioso, fazer um assentamento é reforçar a conexão entre um indivíduo ou grupo e o orixá a partir de uma delimitação espacial, é criar um lugar sagrado para cultuar e cuidar da divindade da forma mais apropriada.
É interessante perceber que o assentamento de trabalhadores sem-terra também é um processo que permite que as pessoas se tornem responsáveis por um território, de forma a se potencializarem e se tornarem produtivas, empenhando seus trabalhos e suas energias mais primordiais na direção de uma vida mais equilibrada. Esses dois tipo de “assentamentos” foram desenvolvidos historicamente como formas de resistência para povos à margem dos privilégios. Essa aproximação por bissemia proposta por Lauriano nos inspira a pensar na potência da criação de uma rede de solidariedade mais forte entre a luta por terra e a luta antirracista.
A obra de Jaime Lauriano investiga a colonização no Brasil não voltando-se apenas para os dados históricos e eventos do passado, mas perscrutando a persistência no tempo presente dos ecos da violência da colonização e da referente resistência popular. Para isso, o artista cria documentos que podemos utilizar para reorganizar nossos pensamentos e memórias e também contra-cartografias que podemos utilizar para localizarmos a nós e aos outros no cenário da exploração contemporânea.
No trabalho “Invasão” (2017), Jaime produz um mapa que expõe a relação no Brasil entre o uso da força pelo estado e o procedimento da ocupação territorial. Para isso, Lauriano justapõe referências a diferentes casos como o próprio processo da colonização escravocrata portuguesa, a construção desmatadora da transamazônica, a edificação de enormes hidroelétricas em terras indígenas, a reintegração de posse de terrenos anteriormente ociosos que foram ocupados por população sem-teto, a desocupação de comunidades urbanas alternativas de imóveis abandonados, as remoções à força de população de baixa renda para obras de infraestrutura exclusiva para os jogos olímpicos, etc. O trabalho é um desenho feito à traços brancos sobre um tecido vermelho, o que pode fazer alusão à sanguinolência desses processos e à bandeira dos movimentos sem-terra.
Já em “Combate #1” (2017), Lauriano organiza sobre a parede instrumentos utilizados no trabalho no campo remetendo ao desenho cartográfico das Capitanias Hereditárias. Esse sistema de divisão e administração territorial vigorou durante a primeira fase da colonização no Brasil, na qual os donatários, responsáveis pelas 14 gigantes frações de terra, mantinham relação íntima e direta com a Coroa Portuguesa. A mistura entre princípios feudalistas e proto-capitalistas, estrutural àquele sistema, representa a raíz da maneira com qual os grandes latifundiários de hoje em dia lidam com o território brasileiro, seus interesses privados e o poder público.
A ligação entre a sobrevivência naturalizante das imagens da escravidão e a manutenção da cultura racista é o objeto de interesse da instalação “Trabalho” (2017). Nessa obra, Jaime intercalou objetos de uso comum (camisetas, canecas, objetos de decoração etc.) comprados recentemente em barracas, lojas, sebos e leilões virtuais em diversas cidades com placas expondo textualmente relatos reais de pessoas que foram alvo de diferentes tipos de ataques racistas. O Brasil é um país que viveu mais de três séculos de violenta escravidão dos homens negros pelos homens brancos, até menos de 130 anos atrás. Essa obra, mesmo que seja uma instalação, respeita o mesmo tipo de estrutura fragmentada e o mesmo procedimento organizacional vibrante dos mapas de Jaime. O trabalho ressalta ainda a importância de se levantar esse assunto e de se criar novas imagens, narrativas e experiências mais positivas para o povo negro no Brasil.
No trabalho “Armas de fogo o meu corpo não alcançarão” (2017), Lauriano utiliza uma embalagem para transporte de grãos da África para o Brasil como suporte para o encontro entre a imagem de um pelourinho e parte da oração de São Jorge. É interessante perceber que, enquanto o pelourinho, símbolo maior da brutalidade da escravidão, foi realizado a partir da serigrafia (um processo gráfico cuja tecnologia carrega em si a vontade de repetição e produtividade), a oração foi desenhada manualmente com pemba branca e preta, uma espécie de giz sagrado utilizado em muitos rituais no candomblé.
Jaime, quando faz alusão em seus trabalhos a elementos da religiosidade afro-brasileira, reconhece que, por muitos séculos, esse foi o principal espaço de resistência da cultura negra no Brasil, um verdadeiro núcleo civilizatório, o museu-escola vivo da africanidade, o maior responsável pela sobrevivência de uma cultura que entende o corpo como a morada da potência e não do pecado, que entende a alegria como a maior das virtudes e não o amor universal, que valoriza mais a agregação de gente do que a concentração de renda.
A modernidade branca européia (cujos privilégios sobreviventes são garantidos pelas leis brasileiras) teve seu grande interesse investido sobre o tempo e o sentido: o progresso, a velocidade, a produtividade, a eficácia e o fim da pausa são suas questões. Porém, as culturas de origem africana, não-hegemônicas, interessam-se pelo espaço e pela potência. O próprio axé, potência vital, elemento fundamental da vida afro-brasileira, é, na verdade, o poder de realização, de criação, no espaço – o que é muito explicável para uma cultura diaspórica, que atravessou processos de desterritorialização e foi lançada sobre uma terra que não poderia ser sua.
A exposição “Assentamento” ganha ainda mais contundência no momento em que há a tentativa de flexibilizar a definição de trabalho escravo no país; em que o Incra vem sendo desmantelado em troca de apoio dos ruralistas no Congresso; em que povos originários e quilombolas têm os direitos sobre suas terras questionado; em que a grilagem na Amazônia é regularizada por uma Medida Provisória, aumentando o desmatamento e a concentração de terra; em que pela nova legislação trabalhista um latifundiário pode retribuir ao trabalho de camponeses apenas com moradia, alimento e mais trabalho em condições desumanas. Articulando elementos do passado colonial e desse presente alarmante, Lauriano aponta um caráter trágico em nossa história e, dessa forma, inspira a revolta e a insurgência para uma nova libertação da escravidão. Mas, dessa vez, com protagonismo dos trabalhadores afro-brasileiros, para além de princesas, e com a força dos Orixás.
Bernardo Mosqueira, Outubro de 2017.
Bernardo Mosqueira (Rio de Janeiro, 1988) é curador, escritor e professor. É um dos fundadores e gestores do Solar dos Abacaxis, espaço independente para arte, educação e transformação social no Rio de Janeiro; Vencedor do Premio Lorenzo Bonaldi 2017 para curadores com menos de 35 anos, realizado bianualmente pelo GAMeC, em Bergamo, na Itália; Idealizador e diretor do Prêmio FOCO Bradesco ArtRio desde 2013; Membro da Comissão Curatorial da Galeria de Arte IBEU de 2011 a 2015; Lecionou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage; Realiza de forma independente o festival de performance Vênus Terra desde 2010; Foi um dos premiados no 1º Laboratório Curatorial da SP-Arte com a exposição “Trepa-Trepa no Campo Expandido”, 2012; É autor de diversos catálogos e do livro de ficção “Carta Aberta por Zé Bento e Entendida por Zé Jorge”; (2013); Foi responsável por dezenas de curadorias, entre elas: Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome (Rio de Janeiro, 2010); Quase Casais (EIC Maus Hábitos, Porto, Portugal, 2010); E os Amigos Sinceros Também (Galeria de Arte Ibeu, Rio de Janeiro, 2012); Conexiones (Buenos Aires, Argentina, 2013); Tronco (Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, 2013); primeiro estudo: sobre amor (Galeria Luciana Caravello, Rio de Janeiro, 2014); Anna Bella Geiger, CIRCA MMXIV: Imaginação é um ato de Liberdade (Mendes Wood DM, São Paulo, 2014); Encruzilhada (Parque Lage, Rio de Janeiro, 2015); objects in mirror are closer than they appear – Lexus Hybrid Art 2015 (Rossyia Theater, Moscou, Rússia); ASSIM (Museu do Homem do Nordeste, Recife, 2016); o que vem com a aurora (Casa Triângulo, São Paulo, 2016); Primavera nos Dentes (Galeria Lume, São Paulo, 2016); primeiro estudo: sobre a terra (A Gentil Carioca, Rio de Janeiro, 2017).