Trabalho exemplar – a coexistência (2009)

Os trabalhos apresentados por Marina Freire em sua exposição no CCSP falam de delicadeza e precisão. São resultado de ações como a de desfiar um tecido, equilibrar um conjunto de objetos, reproduzir as nuances de uma textura, todas realizadas no ateliê da artista. Aparecem no espaço público do Centro Cultural como produto de uma atividade meticulosa, demorada, que acontece sob o total domínio de seu produtor. Surgem como fruto de um longo processo, que se inicia pelo estudo de formas e texturas, cores e volumes, luzes e sombras. São longos testes, ensaios, nos quais a artista se porta como se fosse uma coreógrafa de coisas. Arranja massas e formas, testa seus limites, detém-se diante deles, incorpora suas respostas, repropõe soluções. A urgência do fazer reside na busca do ponto de configuração do arranjo, não em pressões externas (criar algo, fazer existir) ou mesmo internas da artista.

Uma pedra no extremo da prateleira sustenta uma pilha de cartões de ponto que contornam a xícara, que quase toca a pedra. Um sino repica seu contorno em uma sequência de pilhas de cartões de ponto que o protegem e ao mesmo tempo seguem. Uma estrutura de forças opostas se harmoniza numa imagem e num objeto delicado, amorosos, em que não se anulam nem as tensões, nem as partes. O resultado é pacífico, não-violento. Não se omite a força e a contaminação necessárias ao processo. A matéria precisa ser manipulada, embora não seja necessariamente plástica ou elástica. Mas ela se conforma. Não cede, acompanha. Não deforma, mas adquire a forma do seu par. O artista não é o mágico que faz ver o invisível, mas o artífice, o artesão. Aquele que conhece aquilo do que as coisas são capazes e as ajuda a realizá-las. Promove sua coexistência.

Fazem lembrar a definição dada por Fiedler: “A atividade artística não é nem imitação servil nem sensação arbitrária, mas conformação livre”. Um fazer, não simples intermediação entre ideação e realização, que “requer uma dimensão reflexiva que permita o estabelecimento de relações precisas, dignas do nome ‘estrutura’, o que equivale a dizer que as obras de arte realizam uma fenomenologia de outra ordem […] em que a resistência do mundo é parte integrante de seu movimento e para a qual a reflexividade precisa incorporar um momento de opacidade, quando o travo das coisas coloca limites à transparência dos atos reflexivos” (NAVES, 1993, p.23).

Esses arranjos, afinal, apresentam-se como modelos de convivência, algo bastante inusual para os dias de hoje. Poderiam parecer anacrônicos, postulando formas de conduta e de vida numa época em que prescrições não cabem mais. Mas, observando bem, nada tem de autoritários. Não são prescrições, mas exemplos. São proposições, quem quiser que se contamine por elas, como as próprias coisas. A escolha está dada.