murais ou balanças de pesar a luz
Uma significativa parcela dos artistas que iniciaram suas carreiras a partir de meados da década de 1980 optou por trabalhar a pintura, a escultura, a gravura e seus materiais tradicionais. Deu-se assim uma inversão de corrente frente à tendência majoritária dos artistas das gerações precedentes, que haviam migrado para um sem número de direções, recorrendo em operações e trabalhos de artes a materiais, instrumentos e sugestões os mais diversos, fenômeno este, que, entre outros aspectos, levou a uma ampliação do conceito de experiência estática.
No Brasil, tal diáspora ou êxodo dos meios tradicionais da arte principiou, na verdade, no início da década de 1950, quando os concretistas e outros grupos de filiação construtiva, ainda sem abandonarem a tela, começaram a fazer crítica das premissas e procedimentos característicos do sujeito estético, propondo uma atualização da racionalidade nesse setor.
Considerando-se, pois, este ciclo histórico – cuja lógica não inclui a racionalidade estética expressionista no Brasil (Goeldi, Iberê) –, o retorno aos suportes tradicionais, verificado a partir dos anos de 1980, assinala o fim do período iniciado com a operação crítica construtivista, na década de 1950. Encerrou-se portanto, no Brasil, há cerca de duas décadas, a diáspora crítica dos materiais da arte – deixando, de lado, aqui, os casos de processos mais midiáticos, que comportam outro tipo de análise. Se buscarmos, numa reflexão sumária e inicial, os argumentos para essa reversão de tendência, depararemos prontamente com duas ordens de razões, que de certo não excluem outras: primeiro, um esgarçamento das relações entre arte e vida, cuja conquista o construtivismo otimisticamente ambicionara, mas, que, qualquer balanço rápido, efetuada entre meados das décadas de 1970 e 80, já indicava como território perdido para o irracionalismo e o caos planejados da cultura de massa. Entrementes, um segundo apelo para o retorno aos territórios estéticos tradicionais é dado, possivelmente, pela nova ordem geral das coisas, ou seja, por uma tendência central do novo ciclo mundial do capitalismo, ligado ao salto tecnológico da informática, que impulsionou a reestruturação social global consoante a um forte aumento das exigências de especialização em todas as atividades.
Como se deu especificamente na pintura a entrada nesta nova ordem? Talvez seja ainda cedo para se determinar, com amplitude histórica e efetividade crítica, se houve, ou não, a retomada de princípios históricos do expressionismo, bem como avaliar as características gerais do novo ciclo. Porém, desde logo, é possível identificar duas posições básicas: um resgate ciente e erudito de fundamentos tradicionais da ciência do sujeito pictórico, que se traduziu, no Brasil, em releituras de obras como aquelas de Matisse e Morandi ou mesmo numa certa revisão estritamente pictórica moderna; e, de outro lado, deu-se ainda um processo de pseudo-adesão, contudo bem mais ingênuo, a clichês da subjetividade pictórica expressionista, privada da tensão crítica e do senso de “mal-estar na civilização” que lhe eram originais, substituídos agora por exigências hedonísticas e conservadoras de satisfação, convertidas em manobras de tela, ou em museus, sob a forma de histrionismos e infantilismos, estimulados dia a dia pela manifestação cultural.
Após esse longo intróito já está mais que na hora de ser por a pergunta: qual o lugar da obra de Germana Monte-Mór nesta nova ordem geral, qual a sua peculiaridade própria no contexto dos últimos vinte anos? Parece-me justamente que é o da exceção, o de um ponto de vista construído como contraponto crítico a essas tendências majoritárias e com valor distinto, a “erudita” e a “ingênua”, conforme mencionado. Em termos precisos, seu trabalho vem se destacando, na década e meia que já dura, por uma ênfase na materialidade e na sobriedade, senão pelo laconismo de expressão, ao transferir à matéria as prerrogativas de formalização do sujeito pictórico, que, na sua geração, se busca em geral retomar, uns com ciência da tradição, outros, com outros meios.
Diversos elementos podem ser apontados, na obra de Germana Monte-Mór, como indicativos dessa ênfase materialista, que ainda reverbera, pode-se dizer, a cultura dos materiais que constituiu uma das características, no Brasil, do neocroncretismo. Assim a pintura de Germana já se fez por meio da lida com asfalto, com o café, com a argila, e, agora, mais recentemente, recorre a uma resina, o óleo damar, combinado, desta vez, a pigmentos azuis. Invariavelmente, a lida com tais matérias enfatiza, muito mais do que a significação das formas resultantes ou a ciência formalizadora da artista, os elementos constitutivos da obra e sua determinação recíproca, às vezes, inclusive, ao modo da aversão ou da repulsa, como notou bem Nuno Ramos, no texto da mostra de 1995, no Centro Cultural São Paulo.
Não se resume, porém, a essa economia dos materiais ou a esse diálogo dos elementos a organização constitutiva dos trabalhos de Germana. Alguns outros fatores vêm se apresentando decisivamente no jogo estético que a autora propôe, constituindo uma diretriz, que parece se delinear, com coerência e reflexividade crescentes: os diálogo do trabalho com o corpo e com a arquitetura, manisfestos numa pintura que cada vez mais parece se alinhar com as tradições do afresco e do muralismo.
Situada na intersecção, como uma forma de mediação entre o corpo e o espaço arquitetônico, esta pintura se torna cada vez mais envolvida com o mapeamento do perto e do longe, tal um ato de cartografia. Que elementos indicam tal vocação? Os sinais do corpo, conforme Sônia Salzstein detectou, de modo admiravelmente agudo, por ocasião de uma mostra na galeria AS Studio, em 1997, não são de ordem imagística ou narcísica, mas denotam, no que Sônia denominou “ato de espacialização meio cego”, o papel do corpo como protagonista, que pinta como modo de se por em situação, ou que opera, como disse Sônia, segundo “a preocupação… de repor o corpo em correlação com o espaço”. O que obriga à constatação de que tal pintura, desde sempre, é muito mais braçal e, correlatamente, muralística, do que manual e gestual ou expressiva. Além do caráter não imagístico, expressivo, gestual ou egóico dessa pintura, verificam-se certas características de objetividade indicial, ligadas á obtenção da forma por meio da impregnação ou da determinação recíproca das matérias desencadeadas pela artista, que Lorenzo Mammì, no momento da primeira individual dessa autora, em 1994, fez remontar à sua formação original como gravurista.
Para além da recusa da tela, que, por tradição se configura como um duplo da mente ou como dimensão espiritualizada, hoje se reafirma, com mais nitidez, que o corpo, e não o ego, é que dita a configuração dessa pintura porque a artista passou mais e mais a evitar qualquer sugestão de inscrição solipsista sobre superfície, para sugerir um diálogo de tensões entre áreas, configurando situações plurais, sem referentes fixos. Com efeito, qualquer tentativa de designação positiva do fundo ou da forma, nos trabalhos com óleo damar, será refutada, com ironia, pelos próprios trabalhos. Nas situações, cuja única positividade é dada pelas diferenças materiais, entre uma área e ourta, no diálogo com a luz, a experiência dramática evocada pela artista é aquela que o corpo é o primeiro a sentir: estar perto ou longe de outros corpos*. Os trabalhos seguem assim a diretiva de Braque, de que cabia à pintura não visar à representação das coisas, mas à da distância entre elas.
O desiderato da pintura de Germana Monte-Mór é portanto o de materializar o espaço, traduzindo-o como distância vivida ou dramatizada, mas, convém insistir, sem nenhum traço de expressividade pessoal ou subjetiva. Não se tratam de cartas íntimas, mas de mapas de uso comum. A operação cartográfica de medir as distâncias é obtida, nestes trabalhos, por meio da adição da resina damar ao papel, tornando-o, como uma emulsão fílmica, mais sensível à luz nas áreas de aplicação. Agora, após suas duas últimas mostras, em 2000, na Capela do Morumbi, e no início de 2001, na galeria Razuk, em que já trabalhava com o óleo damar, constitui, desta vez, a última novidade material desta pintura. Para que estes pigmentos azuis?
Creio que respondem estrategicamente a uma dúvida ou receio que deve ter acometido à artista em seu raciocínio produtivo recente. O recurso ao óleo damar nasceu para a mostra na Capela do Morumbi, espaço de raro valor histórico e arquitetônico. Sua base é constituída de paredes rústicas de taipa de pilão, contendo seixos de rio, portanto, de tipo extremamente raro, conforme assegura o arquiteto e estudioso Carlos A. C. Lemos. As paredes em ruínas desta edificação antiga alcançavam poucos metros acima do solo. A estrutura foi recuperada por meio do projeto do primeiro arquiteto modernista de São Paulo, Warchavchik, que ergueu sobre os restos das paredes remanescentes, sem ocultá-las, paredes de tijolos argamassados, a fim de nelas assentar a base estrutural de um telhado. A obra moderna não tolheu ou ocultou a porção antiga, mas até a destaca, uma vez que o revestimento, sob a alvura do cal contrasta com a base antiga e assim se realça, com extraordinária nitidez, a consistência própria das paredes de tapia, nas regiões inferiores. Lá, nesse lugar, os desenhos ou pinturas de Germana Monte-Mór acentuavam essa dialética dos materiais e funcionavam como um antiviral. Ou seja, ao invés de destacarem uma ordem transcendente externa, mimetizavam a alternância entre porções revestidas e desnudadas dos muros, e remetiam portanto o observador ao corpo das próprias paredes e aos limites concretos do lugar. Logo, os trabalhos funcionavam já à primeira vista e evidentemente como operadores arquitetônicos, pontuando e ressaltando as características do espaço construído.
Entretando, uma vez transferidos, poucos meses depois, para o espaço mercantil e o lugar abstrato da galeria, os trabalhos se viram privados de seu interlocução histórica e arquitetônica. Logo, como que ganharam o teor de abstração pictórica, ou até mesmo uma certa expressividade espiritual, uma vez que as transparências bem poderiam ser lidas, ao modo de vitrais, como um certo recurso ao valor pictórico tradicional da luz como símbolo do espírito. A pintora materialista, por certo, não desejava isso e, sagazmente, na ocasião, previniu o perigo da leitura abstratizante dos seus trabalhos. Assim, afastou alguns papéis das paredes, suspendendo-os como objetos no espaço, tal como já fizera na capela, por meio de suportes especiais. E ainda dispôs no ambiente duas volumosas bacias(96 x 36cm), moldadas em parafina, a partir de utensílios tradicionais. Deste modo, repôs, por meio dessa espécie de medidores e continentes, a questão concretamente espacial da inscrição dos seus trabalhos num lugar ou ambiente.
O recurso aos pigmentos azuis procede no mesmo sentido. Retoma-se a estratégia histórica de Cézanne, que concebeu o recurso ao azul em suas telas, a fim de tornar visível ao ar, materializando o espaço ou a distância entre as coisas, na contracorrente da concepção clássica que conjugava triadicamente olhar, espiritualidade e transparência. O propósito de Cézanne era o de tornar, por meio do azul, o ar opaco, e o olhar, operação consciente de sua matriz corporal, inscrita num lugar específico. Analogamente, os pigmentos azuis, introduzidos por Germana Monte-Mór, destacam a materialidade dos papéis, ou seja, a sua analogia com o suporte fílmico e não com o vitral ou a janela. Os pigmentos azuis fazem mais, no caso, com a luz: colhida e represada nas zonas azuis, que simulam os esforços a que se submete uma superfície de apoio, a luz ambiente se transforma em massa e adquire peso, sendo as zonas pintadas dos papéis, como se fossem bacias de luz, aparelhos de represar e medir tal massa.
Confirmam-se,assim, a vocação arquitetônica e a inclinação muralísticas de tal pintura, que não produz telas, mas ocupações de espaço por meio de objetos pintados, e que assim sugere ao observador a apropriação concreta e material da sua situação. Para se retomar o fio da conversa de antes, com uma tal poética nos rencontramos de novo com procedimentos estéticos do tipo daqueles dos “Núcleos” no espaço, da lida dos pigmentos nos “Bólides”, enfim, dos diversos modos de apropriação corpóreo-ambiental de Hélio Oiticica. Em suma, situamo-nos dentro dos desdobramentos da poética da corporeidade e da anti-alienação, própria do moviemnto neoconcreto.
“Daí (os desenhos) se produzirem de um jogo de aproximações e distanciamentos”, notou S.Salzstein. E, analogamente, “parece ser a oposição entre proximidade e distância que articula as demais oposições. O olhar é sempre chamado para as fendas que aí se formaram”, observou Alberto Tassinari, na mostra da artísta, em 1998. Cf.A.Tassinari, “Lada a Lado”, cat., São Paulo, Marília Razuk Galeria de Arte, 1998.