Mulher planta brisa mar | Julia Lima | 2016

Mulher planta brisa mar*

Linhas sinuosas e irregulares que parecem não ter começo nem fim se espalham sobre o papel, entremeadas por manchas sólidas de variadas cores e intensidades. Os campos tonais, em um primeiro olhar de formatos indefinidos, preenchem quase toda a extensão do desenho, ora encontrando continuidade entre uma folha e outra, ora interrompendo-se abruptamente – apenas para dar lugar a uma nova matiz que aparece no pedaço seguinte do longo políptico. Os espaços brancos oscilam entre comportar-se como ossatura e lacuna, como vazios residuais das cores que, ao mesmo tempo, as arquitetam e sustentam.

A estrutura alongada de Sambaqui, composto por 6 partes alinhadas horizontalmente, compele o olhar a movimentos de leitura, como se para tentar decifrar os elementos articulados. Para além das arrastadas linhas, pequenas garatujas menores rebentam e irrompem ao acaso sob, sobre e por entre as formas maiores, evocando a presença do corpo em línguas, unhas, pêlos, gargantas, peitos, ou a existência de matéria, como folhas, galhos, pedras e ganchos. Esse corpo e essa matéria, entretanto, não são figurativos nem literais, mas sim a insinuação de um organismo vivo constituído de infinitas partes – não são a representação narrativa de objetos específicos, mas a transpiração dos fragmentos visuais, acumulados por Marcia de Moraes, que sugerem forças e vibrações, rigidez e flacidez, dilatação e tensão.

Assim como as milenares concheiras erguidas por povos que juntavam restos mortais, animais e detritos em grandes montes ao longo de costas e litorais, seus trabalhos impõem-se como retratos de carne, osso e objetos acumulados por uma artista que constrói e sedimenta as suas infinitas referências, enquanto também incorpora os novos contornos que surgem espontaneamente no correr do traçado. Suas obras se abrem a investigações e escavações que podem revelar a mira de seu olhar, detalhes de sua vida e reações de seu corpo.

Junto a Sambaqui temos o tríptico Os fósseis (a lava), cujos traços e cores geram uma emaranhada trama revolta, de tonalidade vibrante, carregada de partículas arredondadas que já haviam se manifestado dispersamente naquele primeiro desenho e se alastram em abundância no segundo – laranjas, óvulos, peitos, sementes, vesículas, células e incontáveis outras alegorias que nossa percepção insiste em projetar. As numerosas esferas se conectam por algo que parece um invólucro elástico que as contém e imobiliza. As silhuetas preenchidas e não preenchidas lembram a encosta de uma grande montanha entrecortada por um fluido que escorre como o percurso de um rio ou da lava após uma erupção – essa suposta fluidez, porém, é congelada, solidificada, estanque.

O processo empregado por Marcia de Moraes permanece o mesmo há alguns anos: riscos em grafite são alternados com preenchimentos em lápis de cor – as superfícies tonais se expandem e alteram o desenho, que se esparrama vagarosa e laboriosamente sobre a folha. No entanto, suas obras distinguem-se muito entre si, e a cada nova fase de produção ganham conformações singulares, seja em traços mais marcados ou leves e hesitantes; nos vazios afinados ou extensos; nos tons pastéis, coruscantes, ora mais contrastantes, ora homogêneos; em vertentes concêntricas ou expansivas; com profusão quase excessiva ou presença mais tímida de elementos diminutos e detalhes; com formas mais carnudas, encorpadas, ou mais delgadas; e estruturas escorregadias e fluidas ou rijas e fraturadas.

Em suas colagens, contudo, a artista parte desse mesmo processo para, depois, enveredar por uma lógica inversa. Ela picota pedaços e retalhos, seguindo ou não os contornos, e segue combinando, empilhando, sobrepondo e encaixando, como num quebra-cabeças colorido sem ordem e padrão. Se o gesto do traçado é amplo, extrínseco, as colagens operam em um vetor oposto, de manuseio contido e repetitivo de sobreposição, muito mais intimista: elas revelam menos à medida que mergulham pra dentro de si mesmas e sempre ocultam o que há por debaixo. Os talhos do papel – que lembram cacos, lascas, escamas – são intrincadamente trançados, em sucessivas camadas, criando volume e insinuando a densidade de matas fechadas ou as reentrâncias de cavernas.

Já nos novos polípticos, os espaços vazados parecem mais distendidos, ainda que, contraditoriamente, as áreas tingidas também sejam mais espessas. O corpo dos desenhos tem mais cor e mais branco ao mesmo tempo. Há cada vez mais detalhes brotando da urdidura tecida por Moraes, que deixa de lado a liquidez para vigorosamente enfrentar a transformação da matéria, o que é sólido e cheio de estilhaços, o que é rígido, que tem presença e que se torna concreto. Ela adentra, então, em uma desconhecida dimensão do trabalho, para além da superfície, que mostra coisas de uma maneira rara, como se paradas no ar ou fossilizadas no tempo.

 

* verso de As contradições do corpo, de Carlos Drummond de Andrade