há um horizonte
Paulo Sérgio Duarte
luz negra. anita schwarts galeria de arte rj 2009
Há um horizonte que se materializa numa linha de relevos em parafina. Um horizonte em movimento acima e abaixo da terra e do céu negros, e em ritmo. Essa mimese pode parecer precária, mas é a apropriação da “imagem” à qual está condenada a obra de arte. A representação, nesse caso, não habita o trabalho, mas a subjetividade associativa. Esqueçamos a paisagem, pensemos na linha. As áreas negras oscilam, acima, abaixo, sendo sempre as mesmas. Observem a linha como varia. Fosse um horizonte, seria em partitura. Muitos esquecem que o romantismo havia praticamente apagado o ritmo da música do Ocidente, recuperado pela presença africana e pelo contato com a música de outras culturas. Brasileiros estão acostumados a isso, não precisaram do jazz, mas fazer dançar um horizonte é um achado plástico: acima, abaixo, um pouco abaixo, um pouco acima, às vezes muito abaixo, muito acima, mas não perde a linha.
E o que é a linha? É a clave, a chave. Está lá, bem clara, nos relevos que muitos associarão a montanhas na paisagem, entretanto é antes de tudo um desenho em três dimensões. Sim, o relevo está na linha ou, melhor, a linha está no relevo. É o traço que se eleva e delicado adquire volume, claro, cor do material – parafina –, e se opõe à pintura negra de asfalto. Esta preenche toda a superfície, só deixa as marcas de sua passagem sobre o papel com seus diluentes. Não é fácil formular frases plásticas coesas e significantes; articular elementos visuais na sua plena gratuidade que possuam a exata medida de expressão e constrição, quase sacrifício, para deflagrar sentidos precisos.
A música que está lá escrita poderia ser tocada por uma inteligência equivalente e haveria tantas expressões sonoras possíveis, mas todas com a delicada generosidade do horizonte traçado. O negro é o rumor do mundo, sua presença constante e incômoda, é a pintura que traz o mundo acima e abaixo da linha. Está próximo do silêncio e da ausência. Como diria o maestro: não está forte demais nem rápido demais. Tem o andamento exato para qualquer olhar mais cuidadoso.
A pintura ora está em queda, de repente se ergue, entretanto, sempre esbarra na parafina. É a opacidade do asfalto, que a artista domina desde seus desenhos de décadas atrás, que encontra um obstáculo, um limite que não transpõe como se cedesse à sedução da mínima cordilheira. Obediência sábia que a obriga a uma completa obediência ao papel, seu leito. E sobre o mundo e sob o céu negros, a linha, o desenho que não se contém no traço e se eleva. É discreta e frágil. Só vendo. O relevo se disfarça na superfície para quase aderir à pintura. Mas se estende, obriga ao panorama porque prossegue sem interrupção por todos os compassos da frase visual. A fruição é convidada a um pequeno passeio, não apenas ao avanço e ao recuo de sempre, mas à pequena caminhada para apreciar os compassos e as durações que estão discretamente embutidas nos altos e baixos da cera e ostensivamente presentes nas áreas negras. É um trabalho afirmativo de Germana Monte-Mór e carregado de um fôlego diferente, uma respiração de nadador, com ritmo, diferente daquela apneia do mergulhador, exigida pelas grandes áreas habilmente asfaltadas que recobrem as nossas próprias angústias para domá-las, ao projetá-las no mundo nas grandes pinturas sobre papel e ao recobri-las com o manto acolhedor da identificação com nossas tristezas. Com a respiração suspensa mergulhamos nos grandes desenhos. Aqui, não. A afirmação do desenho organizado pelo relevo em parafina, seu ritmo e compassos, sua alegria tocada em surdina, vai de encontro à monumentalidade que espalha a cor preta em grandes superfícies nas quais quase se apagam todos os gestos tal a força da opacidade. Aqui, simplesmente, nadamos, não precisamos prender a respiração.
Nas grandes pinturas sobre papel a organização de uma totalidade coesa a partir de elementos autônomos continua presente nessa reunião de trabalhos de Germana Monte-Mór; é parte de seu método que experimenta uma intensa contração na impregnação da cor preta do asfalto sobre o papel. Ao mesmo tempo, sua expansão delimita as bordas que o pigmento não alcança e é cercada pela terebintina que quer ir mais longe e marca o suporte como se o veículo, por si só, viesse evidenciar com seu tom a superfície que impregna e eclipsa levemente a brancura do papel. Com um modo muito próprio, tudo se organiza para que nada seja entregue como uma coisa que já estava pronta, nem mesmo a superfície do suporte, este tingido pelo veículo do pigmento, mesmo quando este não está presente.
Seria como se o ready made estivesse no grau da cegueira absoluta, aquela que nenhum cego experimenta ou possui, pior, algo a que nem o tato, nem o gosto, nem a escuta tivesse alcance. A artista não quer pratos feitos, nem mesmo nos ínfimos detalhes. Algo pronto, tal qual está no mundo e não precisasse de olhos para ver; os cegos enxergam mais que aqueles que têm os olhos embrutecidos; é para esses limites horríveis que os videntes não conseguem ver que é preciso realizar. Algo para os sentidos. É isto: tornar real algo que antes não existia. Por isso, com Germana Monte-Mór, tudo seria elaborado muito sutilmente, sem alardes cromáticos, sem a festa carnavalesca; e tanto a eloquência da angústia dos grandes mantos negros, quanto a alegria sutil que desfila na linha de parafina ao longo da partitura, todos se juntam para nos agregar, a nós mesmos, tão separados no nosso interior. Somos essa alegria discreta e uma imensa tristeza. Agora todos juntos, numa grande festa na qual não há nada a comemorar.
Surgem novos desenhos: poderosos, eloquentes, numa escala direta que se encontra de frente com o corpo. Não traem o processo do trabalho nem tergiversam. Mas trazem, por oposição, algo novo. Sobre a superfície há uma matéria nobre, os traços são em mármore de Carrara, as linhas são volumes escultóricos que se intrometem na pintura e nos desenhos. São troços nobres que, a meu ver, só existem para dizer que não há limites entre a escultura, o desenho e a pintura. Essa possibilidade demonstrada de tudo conviver num mesmo trabalho não é novo. O que Germana Monte-Mór acrescenta é esse tônus baixo que ainda não havíamos experimentado, mesmo quando se materializa o volume na superfície. As cantatas de Germana mal admitem tenores, os baixos predominam. De vez em quando um contralto tenta gritar, mas sofre. Esse sofrimento da voz nas cores, contrastes e espaços, grandes cores em uníssonos, é a festa coral dessa arte.