desenhando o ar
Afonso Luz
Revista Novos Estudos, cebrap, nº 60, São Paulo, SP, 2001
Para os antigos o desenho era a arte mestra e primeira, na qual se concentraria aquilo que é essencial a todas as outras três artes da plástica, suas filhas. Toda arte se originaria nele, ainda que como idéia e momento mental, instante seminal do delineamento e da circunscrição pelo traço, quando tudo ganha seu contorno preciso. Mas talvez só na modernidade esse fundamento — do pictórico, do escultórico e do arquitetônico — tenha conquistado uma existência autônoma como atividade significativa, refletindo plasticamente a singularidade de seus meios.
Contudo, como pensar um desenhar em dias como os de hoje? Quais sentidos esse fazer presentifica para a contemporaneidade da arte, tão desnaturada que está de suas formações históricas anteriores? Como pensar a validade desse gesto que com sua força instauradora circunscreve e define todo objeto como aquilo que se porá no mundo para nós — ainda mais numa época bem pouco afeita às formalizações, por mais tênues que sejam? Sem nos interrogar sobre isso fica difícil pensar no valor específico desse gesto, e o desenhar aparece aos desavisados como um ramo menor da arte, privado de atualidade.
Para os avisados, todavia, o desenho muita vez é tido como a maneira mais intimista de expressão, atividade e manifestação imediata da subjetividade, que se relaciona com o papel mediante impulsos e exteriorizações numa corrente fluida. Pensemos aqui nas leituras que aderem a uma obra como a de Leonilson. Talvez seja até verdadeiro imaginar que estamos diante de uma obra que nos dá a pensar sobre a fragilidade e a precariedade dos meios de comunicação de nossa identidade poética, mas isso não é o bastante. O trabalho de Germana Monte-Mór nos propõe outros sentidos. Sua incontornável presença pede para si um olhar muito menos preocupado com a decifração de ícones interiores ao artista que ganharam a dimensão gráfica — a feição material do papel salta aos olhos e sua existência aparece como corpo ocupante de um lugar que nos é comum, como um outro que se dá ao diálogo. É a partir de certo uso da escala que essa inversão da natureza do papel como um suporte se operará, passando ele a ser uma materialidade, por assim dizer, carnal. O papel se destaca da parede e é pendurado, se sustenta por meio de sua própria estrutura, pesa como qualquer coisa que está no espaço do mundo. O desenho, então, surge neste papel desprendido de sua imagem tradicional. Sem dúvida, Germana reflete plasticamente as lições de Mira Schendel. Tecido, pele, trama. Não plano ou superfície homogêneos. Densidade que a luz atravessa, objeto translúcido, forma instável, o papel é uma quase coisa que faz graça da sua indecidível condição, a meio caminho entre o tridimensional e o bidimensional. Em trabalhos anteriores a artista desenhava agregando materiais que acentuavam ainda mais o estado contraditório do suporte, como asfalto ou argila, o que provocava uma reação de desequilíbrio nessa auto-sustentação da folha, e o desenho levava ao limite a suficiência estável do papel, gerando na superfície suaves dobras, amassados e rugosidades, dando a parecer que sairia para o relevo. Esses materiais pouco dóceis se distribuíam de maneiras as mais diversas através da superfície, em alguns casos fazendo uso da dissolução mais acentuada; o asfalto contaminava todo o campo de maneira irregular, como manchas, por vezes escorrendo; isso acontecia em torno de um traço mais longo, ou uma circunscrição, em que a matéria espessa se mostrava bastante concentrada. Germana obteve resultados diversos, contudo não divergentes, o que fez de um período bastante radical de experimentações um momento para o estabelecimento de sua afinidade tanto com o papel — revelando as suas qualidades de porosidade, textura, absorção, espessura, translucidez, opacidade — como com o que se pode agregar a ele sem extrapolar a especificidade gráfica de seu intento.
Com estes seus últimos trabalhos, algo de novo surge aos olhos que inquieta e desmonta nossas expectativas quanto aos desenvolvimentos possíveis daquilo que vinha se constituindo até então no trato das matérias mais brutas sobre o papel. O procedimento é a aplicação de um óleo que dá ao papel relativa transparência, de modo que nada é acrescentado a ele; muito pelo contrário, algo de sua neutralidade lhe é arrancado. A visão tenta atravessar a superfície nos lugares em que o papel é como que dissolvido pelo líquido e encontrar aquilo que está por trás dele, mas há ainda uma espessura que nos devolve para o lado de cá deste tecido suspenso no ar. Só podemos ver algo além quando sua cor se plasma fantasmagoricamente no plano1. Outras vezes essas áreas translúcidas se mostram como se a luz desenhasse sua superfície num reflexo, como se olhássemos a superfície do mar formando um espelho d’água todo ondulado num momento de intensa iluminação. Há sobretudo algo de inapreensível nestes desenhos. A materialidade espessa dos desenhos anteriores se reverte aqui em uma quase imaterialidade, mas sem que deixem de nos parecer familiares uns aos outros. Nada mais intrigante, e por isso mesmo mobilizador de nossa sensibilidade, do que os contratempos e imprevistos que vão ocorrendo na obra do artista, assim como numa música em que ainda não conseguimos fixar a seqüência das notas e nos deixamos levar por um inesperado desfecho. Mas o que nos é tão familiar? De pronto, os desenhos. Mas estes também não são os mesmos de antes, para o infortúnio de nossas progressões. Para apreender-mos o parentesco entre os trabalhos talvez precisássemos voltar ao momento em que na seqüência da experimentação esta matéria vai se convertendo em desenho, antes de o desenho aparecer como que transcendente.
As suas obras anteriores caminhavam para um procedimento mais formalizado, numa abordagem mais controlada do papel, quando a impregnação do material se estabelece numa área determinada e com regularidade na sua aparência, tirando partido do contraste entre o cheio e o vazio, continente e conteúdo. Nestas obras de 1997 e 1998 a organização do material na superfície se dá mediante uma luta para que o material liqüefeito não se propague indefinidamente e uma certa acidentalidade seja manejada em proveito da forma. Há uma ocupação do papel bastante impessoal, como se a própria força da matéria houvesse desencadeado o delineamento de seus contornos, como o fluxo das águas, nos rios e mares, a erodir os continentes à margem, estabelecendo uma orla casual que conforma os solos2.
Essa plasticidade da matéria parece radicalizar o sentido de uma “linha orgânica”, inventada como forma própria de nossa experiência da paisagem, cifra de uma nacionalidade arquitetônica — o que suscita vínculos entre o delineamento dos volumes nestes trabalhos e a linha nos desenhos de Tarsila e Niemeyer. Mas nestes desenhos, se é verdade que podemos sentir essa subjacência de um campo local de experiência, tal sentido não é tomado em virtude de um projeto construtivo no qual uma formação natural se elevaria ao ideal como utopia. Muito pelo contrário, a experiência de uma nature- za se dá em chave trágica, quando uma força sobre- humana surge através da matéria a conformar o contorno do mundo, e para lhe impor resistência e conquistar alguma autonomia será necessário que aprendamos a jogar com a própria força dessa natureza.
Se nos ativermos ao delineamento que resta aos olhos quando o papel circunscreve a matéria, veremos surgir nesta orla das incertas figuras — que ora parecem fendas, ora corpos, talvez pedras ou montanhas, quem sabe topologias aéreas — um traço comum que identifica num conjunto vários dos trabalhos produzidos nesse período todo. Nos últimos, este desenho se espacializa com maior intensidade quando Germana conduz as absorções do papel explorando a forma retangular de seu limite. O líquido se expande, ora surgindo de dois lados diferentes, tomando conta do espaço, e apenas estreito caminho branco ainda divide estes dois volumes transparentes, ora surgindo de um único lado, cindindo a área branca e isolando dois volumes mais opacos, como um canal que aflui de um grande lago; ora desenha com o óleo, ora com o papel, tornando reversíveis alguns pares na série.
Algo parece acontecer para além da quadratura do papel, como se os desenhos nos indicassem uma expansão infinita destes movimentos de insulamentos e de passagens — é sempre muito sutil a diferença entre o que separa e o que integra.
Engraçado pensar que, se no começo os trabalhos pareciam desenhar dois corpos que ficavam lado a lado, agora com as transparências provocadas no papel pelo óleo damar o que será desenhado é o próprio desenho. E na reflexão, nestes corpos incorpóreos, a forma da linha fica cada vez menos impositiva, como se quanto mais formais (e menos materiais) as coisas se tornassem, menos formais nos aparecessem. A artista nos faz recordar daquela intuição infantil em que imaginávamos poder inventar uma figura fazendo o dedo contornar o ar, como se tudo para existir precisasse apenas se separar da inominável transparência que é o mundo.
(1) Junto aos desenhos foram expostas duas bacias feitas de parafina. Há uma correspondência entre elas e os desenhos justamente neste ponto em que parecem corporificar a luz ambiente. Em cada um a luminosidade ressurge entranhada na sua matéria, e sua forma reverbera como se quisesse dissolver-se no próprio espaço circundante. (2) Quando expostas, no final de 2000, na Capela do Morumbi (São Paulo), as obras como que revelavam reciprocamente o desenho das paredes por esse aspecto “erodido”.