a dor de ser dois
Rodrigo Naves
Os primeiros desenhos de Germana Monte-Mór — realizados no fim dos anos 80 e começo dos 90 — pareciam verdadeiros hematomas. A artista evitava a presença explícita de um fazer que ordenasse o asfalto sobre a superfície de papel. Tudo se passava como se a uma pancada inicial se seguissem movimentos que independiam da sua vontade. Assim, seus desenhos também tinham o aspecto de algo feito de dentro para fora. Por mais que a matéria com que desenhava tivesse uma consistência rude e ostensiva, seu tratamento conduzia mais a uma revelação da capilaridade do papel do que à construção de figuras que estabilizassem a área em que surgiam. As formas que víamos eram a configuração precária de um movimento que tendia a uma expansão continuada.
Posteriormente, seus desenhos foram adquirindo maior definição. As áreas de asfalto encorparam e passaram a se diferenciar mais intensamente das demais regiões do desenho. No entanto, muito daquela instabilidade formal permaneceu. A presença ainda mais acintosa do asfalto se via acentuada pela irregularidade de seus contornos, pelo aspecto orgânico de sua configuração. Com sua inconstância, eles não se revelavam aptos para conter a massa que circunscreviam. Criava-se então uma espécie de tensão superficial prestes a ceder. Esse movimento se intensificou nos desenhos expostos em 1998, pois então passou a haver também, num mesmo trabalho, uma relação entre manchas que, num jogo de atração, aumentava a expansão das áreas negras.
O mundo que surgia nesses desenhos tinha uma constituição meio violenta e traumática. Para mostrar-se com força precisava tornar-se desmedido. A intensidade das superfícies negras advinha da capacidade de extravasar seus limites, mais do que de uma saturação ou de extrema concentração. E decorria disso o caráter traumático dos trabalhos: para afirmar-se, as regiões negras deveriam incessantemente mover-se para além de si, colocando no horizonte uma identidade que jamais poderia ser alcançada. Penso ser essa também a razão de uma espécie de sensualidade dolorida que permeia todos os desenhos de Germana Monte-Mór. O movimento em direção ao que está além de nós — a busca de uma continuidade com o outro implicada no erotismo — se revela como uma condenação ao degredo, como desassossego e dor. Justamente porque está para além de nós, porque aí a vontade não reina, ainda que prometamos a cada vez não mais bater nessa porta.
A série de trabalhos apresentada nesta exposição a princípio se diferenciaria completamente da produção anterior da artista. Os contrastes entre as várias regiões dos desenhos foram reduzidos ao mínimo. A presença rude do asfalto deu lugar às transparências criadas pelo óleo damar e uma leveza geral substituiu as expansões espessas das obras anteriores. No entanto, a aparência diversa dos desenhos apenas tornou mais aguda a compreensão da artista, embora ela tenha invertido os termos de sua equação.
Nos trabalhos anteriores suas formas procuravam uma unidade — ainda que altamente problemática — a partir de uma dilatação que proporcionasse aos seres uma situação de plenitude no mundo. Agora, temos de saída uma unidade dada e todo o esforço se concentra em gerar diferenças no interior de uma extensão contínua. Dito de outra maneira: sobre as longas tiras de papel, Germana praticamente não acrescenta nenhum material. A inteireza da folha é perturbada apenas pela variação de transparência que o óleo damar confere a certas áreas. E novamente — como nos seus primeiros desenhos — a porosidade do papel funciona como um território cuja dinâmica tem moto próprio, apenas acionada pela ligeira intervenção da artista.
Há nessas obras uma aposta nos poderes da sutileza, nas conquistas proporcionadas por um convívio prolongado. Os claros que aos poucos se abrem revelam um conhecimento que, aos poucos, livra o mundo de sua opacidade, descerrando novas significações, apontando possibilidades insuspeitadas. Mas não deixa de haver uma certa melancolia a rondar esses rastros. Esse novo convívio com o mundo, se o ilumina, também põe a perder algo de sua carnalidade. E se quase podemos ver através dos espaços banhados pelo óleo é porque o que significa também invisibiliza. A realidade dos sentidos e os sentidos da realidade parecem excluir-se mutuamente, sem compromisso possível. Entre o mundo excessivo dos desenhos anteriores e a claridade tênue dos trabalhos atuais, oscilamos. E talvez se nos entregarmos a esse jogo, talvez um dia, entre um e outro, quando menos esperarmos, o mundo nos pisque.