A casa é sua | Julia Lima | 2017
A casa é sua
Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância.
Julio Cortázar, Casa Tomada
A casa é um edifício para habitar. É a unidade básica da cidade, é referência de pertencimento espacial no mundo. É origem e é destino. É abrigo e é castelo. No caso da nova série de trabalhos de Ana Elisa Egreja, a casa é o personagem principal de uma nova etapa de sua pesquisa pictórica. Em sua trajetória, os ambientes domésticos e interiores sempre foram assunto da artista – as texturas, padronagens e desenhos dos chãos e paredes eram elementos recorrentes em todas as situações que criava. O curioso é que nenhum dos aposentos pintados por Egreja existia. Sua prática envolvia acumular imagens incoerentes e disparatadas, que buscava em meios como a internet, para criar colagens de cenas e arquiteturas que eram em seguida pintadas em escala real.
Desde 2013 sua atenção se voltava cada vez mais às particularidades da arquitetura interna, especialmente às texturas e à matéria. O procedimento da colagem deu lugar a composições de naturezas mortas com objetos reais que eram comprados, organizados, encenados, fotografados por trás de vidros fantasia e, por fim, pintados. Por alguns anos a realização dessas pequenas instalações se desdobrava nos cômodos e jardins de uma residência modernista convertida em ateliê, localizada na Rua Jacarezinho, 92, que pertencia à avó da artista e já não era habitada há muitos anos.
Para realizar os trabalhos apresentados nesta exposição, Egreja primeiro interveio na casa de maneira intensa e radical. Em uma proporção infinitamente maior, realizou o mesmo procedimento que havia desenvolvido com as naturezas mortas: concebeu um tema a partir de suas principais referências, escolheu todos elementos, arranjou os objetos desejados e fotografou a composição para, então, pintá-la. Entretanto, para este conjunto, preparou e produziu a tomada da casa como uma diretora de cinema em um set de filmagem orquestrando o cenário de uma narrativa do realismo fantástico. Cada aposento retratado foi palco de ações reais da artista, que construiu cenas extraordinárias antes esboçadas em seu caderninho. Mobilizou uma equipe para instalar, fotografar e registrar cada um dos diferentes aposentos – espécies de episódios com diferentes móveis, animais, quadros e acessórios, transformados por grafites e papel de parede e iluminados cenograficamente – para, enfim, transferi-los para a tela. O resultado são pinturas figurativas realistas, criadas a partir de um procedimento inédito, mas que lançam mão da mesma técnica virtuosa que marca todo seu trabalho.
No banheiro de azulejos cor-de-rosa típicos dos anos 1950 e 60, polvos foram enrolados nas torneiras e colocados na banheira, acompanhados por pérolas e conchas iluminados por pequenas velas dançantes. As paredes do corredor dos quartos (cujas portas estavam cobertas de adesivos holográficos), foram recobertas de revestimento listrado, e o chão foi tomado por ratos e luzes de natal. Um dos closets de armários de madeira teve seu interior pixado pela artista e seus assistentes, onde então soltaram pequenos canários coloridos. Galinhas gordas andavam e ciscavam no pé da escada de carpete velho e várias pinturas originais de artistas importantes da história da arte brasileira passaram a enfeitar o hall de entrada. Egreja, por fim, montou um grande lago em uma das salas, em frente a uma enorme janela, e o encheu de plantas aquáticas – em uma releitura da pintura Poça, de 2011 – criando um pântano dentro da ampla construção localizada em plena região da Faria Lima. A escolha de cada material para a montagem dessas instalações não se resumiu apenas ao desafio de pintar diferentes superfícies e padrões, ou de encontrar certo tipo de animal ou peça específica, mas também vincula-se aos interesses pela pintura de gênero, principalmente a tradicional pintura holandesa do século XVII. A artista mantém-se fiel aos elementos recorrentes no seu universo criativo, conservando seus procedimentos técnicos e referências da história da arte.
Dessa laboriosa produção também nasceu um vídeo. Mídia incomum de sua prática, o filme poético e documental dá destaque a elementos reais das instalações que podemos identificar nas pinturas, aos menores detalhes. Imagens muito aproximadas, em ângulos fechados, revelam texturas e minúcias dos objetos palpáveis, ao mesmo tempo que reforçam as questões seminais de sua produção pictórica. As cenas filmadas nos permitem acessar o movimento dos animais, o tremer da água, o flamejar das velas, instância que não conseguimos alcançar plenamente nas pinturas.
Esses trabalhos que retratam as dependências da casa operam na escala da arquitetura. Ao visitarmos a exposição, estamos entrando na casa-ateliê de Egreja, que tanto impactou seu trabalho, e agora é praticamente transposta para dentro da galeria. Ela nos convida a estar nos cômodos com os quais conviveu durante parte da sua infância e, principalmente, por quase toda sua carreira e, mais ainda, nos diz: entra, a casa é sua.
Julia Lima.
Julia Lima graduou-se pela PUC-SP em Arte: História, Crítica e Curadoria, e foi aluna do Courtauld Institute of Art, Londres, em 2009. Entre 2013 e 2016, atuou no Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake, coordenado por Paulo Miyada. Hoje atua como curadora independente, e como professora em cursos livres de história da arte e curadoria.