João Moura
lugares do desenho. CEUMA | centro universitário maria antônia sp 2002
Há cerca de dez anos, Germana Monte-Mór vem desenvolvendo, a partir de um interesse despertado, em momentos distintos, pela mancha preta em certas pinturas de Manet e nos desenhos a lápis conté de Seurat, um trabalho de invejável coerência, em que uma intuição original suscita desdobramentos inusitados. Tendo como ponto de partida a mancha solitária que logo se decomporá em duas e posteriormente em três ou quatro, vindo ultimamente a cristalizar-se no par, a artista explorará as relações conflitantes entre materiais, como ao aplicar o peso e a densidade do asfalto frio sobre a leveza do suporte de papel (papel-manteiga, de seda ou de arroz) ou tecido. Mais adiante, produzirá o efeito inverso dando ao papel leveza e transparência justamente ali onde o óleo damar foi aplicado. Explorará também as relações entre figura e fundo, com o suporte e a matéria sobre ele revezando-se numa e noutra função. Não satisfeita, levará para o chão as formas que os limites da tela pareciam já não conter, dando-lhes tridimensionalidade.
Como um desenhista louco que começasse a desenhar sobre o papel e logo se visse desenhando sobre a mesa, as paredes e tudo o mais à sua volta, o trabalho de Germana tem um caráter obsessivo e um poder cumulativo que o enriquecem como um todo. Cada etapa, além de constituir em si um enrique- cimento, enriquece retrospectivamente as anteriores. Isso se deve à extrema coerência desse trabalho, em que as questões vão se desdobrando umas das outras, como aquelas caixas que contêm caixas gradativamente menores dentro de si ad infinitum. Ele tem, no melhor sentido, a característica do ensaio, da experimentação a partir de uma intuição original, e reside nisso, e ainda no que me parece ser sua renitente opacidade, sua recusa a qualquer significação que não advenha de questões levantadas por seus próprios procedimentos de formalização, a sua grandeza entranhadamente moderna.
Nota: Este pequeno texto e seu título evocam um ensaio importante de Benedetto Croce datado de 1905 e intitulado justamente Una Teoria della Macchia. Nele, comentando um livro de 1868 do crítico napolitano Vittorio Imbriani, ligado ao grupo de pintores conhecidos como Macchiaioli, o filósofo se deterá sobre a mancha como metáfora do que para ele é a “essência do fato artístico, a intuição”.