VIEWING ROOM

Felipe Rezende | Arena

30/08/2025 - 16/10/2025

Com estes fragmentos eu escorei minhas ruínas.
T.S. Eliot

Como nos lembra o escritor argentino Juan José Saer, “a ficção constitui um modo específico de tratar o mundo, inseparável da matéria de que trata”. E é neste tratamento específico que ela se manifesta como operação crítica, imaginativa e sensível. O que diz Milan Kundera sobre o romance caminha na mesma direção, aplicando-se, por extensão, à ficção: ela “(…) não examina a realidade, mas sim a existência”. Ao se voltar para o não verificável, ela amplia indefinidamente as possibilidades de abordagem e reflexão, sem negar a existência da realidade objetiva. Pelo contrário, a ficção mergulha em sua complexidade e nela se inscreve como forma de conhecimento, instrumento de pensamento crítico e de testemunho sensível da experiência. E é neste sentido que sua presença opera na obra de Felipe Rezende.

No conjunto de pinturas que compõe a exposição, personagens humanas, semi-humanas, desumanas e não-humanas se acomodam, junto com a paisagem, entre o empírico e o imaginado, o verdadeiro e o inventado, o simulado. Emergem como aparições, reminiscências de registros e fragmentos de cenas, encontros, dados e pessoas reais que o artista inventaria na construção de seu repertório visual e temático.

O modo como organiza corpos, gestos, instrumentos de trabalho, ações e horizontes também reforça certa atmosfera fantástica e fantasmagórica. Efeito semelhante se dá com os simuladores e outros aparelhos de realidade aumentada, retirados de imagens da web, aqui também ironizados e esvaziados.

Conservando poses e posturas, Rezende devolve às imagens “reais” um estranhamento crítico muitas vezes camuflado ou naturalizado nos contextos em que foram capturadas. No caso dos gráficos, o artista faz com que a visualidade do dado — supostamente objetiva — revele o seu aspecto ideológico e ficcional. Esses signos perdem sua função instrumental e, explorados em sua forma, presença e cor, passam a operar como uma espécie de ruído.

Tendo os deslocamentos como parte importante de sua pesquisa e prática, Rezende acumula geografias e tempos muito distintos entre si, mas igualmente atravessados por tensões: das relações laborais, sociais e de classe à exploração predatória do meio ambiente. Na última de suas muitas viagens à Bahia, sua terra natal, visitou uma fazenda de soja e milho no oeste do estado. Levado por Geovanna, amiga pessoal que trabalha na distribuição de insumos para o agronegócio, o artista foi tão impactado pelos maquinários de última geração quanto pelos restos de equipamentos e estruturas abandonadas: ruínas humanas e não-humanas espalhadas pelo terreno como vestígios de ciclos de vida exaustos, que acenam para o que persiste à margem da eficiência tecnológica.

De seus deslocamentos, o artista também extrai os materiais de refugo com os quais trabalha, como a lona de caminhão usada. São parte indissociável da poética e prática do artista. Nos últimos anos, Rezende tem intensificado suas pesquisas e experimentações formais e conceituais com esse material. Em Demeter (2025), que integrou a 14ª Bienal do Mercosul, a lona revestiu, já pintada, a caçamba do caminhão que a transportou, junto com o artista, de Barreiras (BA) a Porto Alegre (RS) onde integrou a instalação site-specific exposta na Fundação Vera Chaves Barcellos.

Arena, 2025

Arena, 2025

Felipe Rezende

Óleo, acrílica, colagem e costura sobre lona de caminhão montada em estrutura de ferro
350cm Ø
Indisponível
arena vistaxxx

Em Arena, suspensa em uma estrutura circular com cerca de 350cm de diâmetro, a lona pulsa. Tudo nela acontece ao mesmo tempo e reverbera na “falta de borda, de guarita, na comunicação inevitável entre os espaços”, como diria o narrador do pequeno romance de Pedro Mairal sobre o personagem Juan Salvatierra –um artista fictício para quem a noção de “quadro” pouco interessava. Na obra de Rezende, a lona de caminhão não é apenas superfície pictórica, mas corpo espacial, flexível e carregado de memória, presença e invenção, reafirmando a vocação da pintura como campo expandido e dispositivo crítico.

Tudo pulsa e acontece ao mesmo tempo, na paisagem povoada pelos encontros improváveis, justaposições, acúmulos espaço-temporais e pela imaginação crítica – onde a pintura não reconcilia, mas intensifica o descompasso do mundo. Ao insistirem em emergir, como as aparições, fragmentos e reminiscências de registros e imagens transfiguram-se, erigindo territórios próprios e familiares ao artista. São seus passeios prodigiosos por esses territórios, na divisa entre o empírico e o imaginado, que nos colocam diante de cenários e personagens tão duvidosos quanto reais. A realidade orienta a invenção tanto quanto a invenção orienta a realidade.

O passante (a saudade é grande mas ainda não dá pra voltar), 2025

O passante (a saudade é grande mas ainda não dá pra voltar), 2025

Felipe Rezende

Óleo, costura e perfurações sobre lona de caminhão
38 x 42 cm
Círculos de outros planos, 2025

Círculos de outros planos, 2025

Felipe Rezende

Óleo, costura e perfurações sobre lona de caminhão
36,5 x 37 cm
Direto da Barriga da Besta, 2025

Direto da Barriga da Besta, 2025

Felipe Rezende

Óleo, costura e perfurações sobre lona de caminhão :
35 x 59 cm
Exumações, 2025

Exumações, 2025

Felipe Rezende

Óleo, acrílica, costura e perfurações sobre lona de caminhão :
53,5 x 37 cm
Vivendo entre as ruínas, 2025

Vivendo entre as ruínas, 2025

Felipe Rezende

Óleo, costura e perfurações sobre lona de caminhão:
47,5 x 42 cm
Indisponível
Uma solução prodigiosa para um problema barulhento, 2025

Uma solução prodigiosa para um problema barulhento, 2025

Felipe Rezende

Óleo, acrílica e costura sobre lona de caminhão
210 x 380 cm
Indisponível
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