Totemonumento (curadoria de Isabella Rjeille) Cildo Meirelles, Clara Ianni, Erica Ferrari, Frederico Filippi, Jaime Lauriano, José Carlos Martinat, Raphael Escobar e Regina Parra

19/01/2016 - 05/03/2016

O diálogo com os mortos não deve parar
até que eles entreguem o futuro que foi enterrado com eles.
Heiner Müller

Por monumento, no sentido original do termo, entende-se por “uma obra criada pela mão do homem e elaborada com o objetivo determinante de manter sempre presente na consciência das gerações futuras algumas ações humanas ou destinos (ou a combinação de ambos)” . Construídos em material duradouro, os monumentos, por vezes, visam anular marcas de passagem do tempo; suas formas sintetizam em equilíbrio e imponência, personagens, heróis ou mártires de fatos sociais selecionados. Buscam forjar uma memória coletiva, a fim de criar uma sensação de pertencimento a determinado grupo; atuam no imaginário do Estado-nação, reforçando as fronteiras sóciopolíticas e marcam a sua presença no espaço público, seja ele feito para contemplação, seja em via de passagem. Não por acaso, o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, abre a Avenida Brasil.

O título da exposição Totemonumento faz referência ao trabalho de Cildo Meireles, Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político, realizado no contexto da icônica exposição Do corpo à terra, com curadoria de Frederico Morais, em Belo Horizonte, no ano de 1970. A ação consistiu em amarrar dez galinhas a uma estaca de madeira e queimá-las vivas durante a abertura da exposição, que se deu na véspera do feriado de Tiradentes, na qual a figura do Inconfidente era tomada como a de um herói nacional pelos militares. Como se sabe, Tiradentes foi preso, torturado e morto por se opor ao Estado, e essa violência a ele infligida no século XVIII foi transformada em ferramenta de opressão. Após ser esquartejado, seus membros foram espalhados e expostos em praças públicas, em cidades do interior de Minas Gerais. A ação de Cildo consistiu em uma crítica brutal, no calor da hora, ao cinismo do poder do Estado sobre as narrativas históricas, que transformou um preso político do passado em herói daquele presente, enquanto este mesmo Estado exercia a tortura, a perseguição e a prisão de muitos outros que desapareceram durante a ditadura militar e cujas histórias ainda carecem ser contadas. A violência, presente no contexto tanto do trabalho como da própria ação, aponta para a instrumentalização da morte, ao transformar sujeitos em mártires, heróis ou estatísticas anônimas.

Do “monumento” efêmero de Cildo Meireles restaram carvão, penas e fotografias, além da memória do artista e de quem testemunhou a ação. Esta obra é apresentada na exposição como uma leitura crítica da história brasileira feita em um momento crucial de seu desenrolar. A decisão de expor uma das fotografias da série de registros – a ver, a fotografia do dia seguinte, com carvões e penas – aponta para a vontade de atualizar algumas das questões que essa obra pode suscitar: como o passado é reescrito hoje? Como suas marcas se inscrevem no presente e o ordenam? O que buscou-se apagar e a quem ergueram-se “monumentos”? Como restituir histórias apagadas a partir do que restou?

A memória torna-se lugar de disputa e, permeada por diversas forças, pode tornar-se ferramenta de soberania ou resistência; é também o lugar da sobrevivência. Transcende o corpo e insiste em retornar. Nesta exposição, a ideia de monumento encontra a ideia de documento , levando em consideração que todo monumento/documento é fruto de uma montagem, de um enquadramento da história pela sociedade e pela época, de acordo com determinados interesses. Portanto, os monumentos representam uma narrativa construída sobre o passado, no presente, para o futuro – são materiais de análise acerca das formas de construção de uma memória que se pretende coletiva.

Assim, há que se olhar, também, através desses monumentos/documentos, para buscar uma parte da história que não encontra representação. Esfacelada em ruínas, torna-se documento quase arqueológico – estes “antimonumentos” são formados pelos fragmentos que sobraram de uma história que tentou ser apagada. Esta ideia é explorada no trabalho de Clara Ianni, Reparação, na qual a artista aponta para o resgate destas narrativas através dos ossos. Baseada em um manual de Antropologia Forense utilizado por equipes que investigam crimes cometidos pelo Estado Brasileiro, a série de desenhos propõem a reparação dos traumatismos através da imagem – para cada lesão catalogada uma intervenção gráfica reparatória. Analisando a relação entre as fraturas e os procedimentos institucionais de controle e opressão utilizados sobre os corpos, o trabalho constitui uma tipologia de formas abstratas produzidas por essas violações. A forma abstrata, que é comum ao discurso artístico, serve, neste caso, ao mesmo tempo como documento e como meio de reconstrução daquilo que foi perdido – tanto as narrativas, como os próprios pedaços ósseos. Essa constelação de fragmentos inconclusos que compõem o trabalho acabam por questionar a própria ideia de história como algo linear e passível de ser acessado de maneira absoluta e total.

O trabalho de Raphael Escobar, Furo, volta-se para as histórias que tentaram ser silenciadas, mas sobrevivem e circulam pela oralidade em uma constante promessa de revisão das narrativas hegemônicas. Nesta obra, Escobar traz a memória de um sobrevivente ao massacre do Carandiru, cruzando-a com as diversas narrativas que correram na imprensa – a ideia de história enquanto versão, montagem e enquadramento é colocada em questão.

As figuras do sobrevivente, do imigrante e do refugiado aparecem nos trabalhos Sobre la Marcha II (o sobrevivente) e Zona de Espera (o fotógrafo), de Regina Parra, como presenças que apontam para uma crise instaurada na ordem dos Estados-nações. A partir do momento em que são forçados a abandonar seu país e buscam outros territórios, coloca-se em questão as fronteiras sóciopolíticas impostas, cuja memória coletiva busca reforçar, em seus monumentos, histórias, heróis, mártires e hinos.

A construção dos monumentos também é permeada pela violência, no entanto, os monumentos sublimam-na em códigos e símbolos. Em Monumento às Bandeiras, de Jaime Lauriano, cartuchos de munições utilizadas pela Polícia Militar foram fundidos em uma miniatura da escultura de Brecheret – este monumento, por sua vez, uma “homenagem” ao etnocídio fundador do país, foi reconstituído aqui com elementos de um dos agentes mantenedores do Estado. Já em Sobre nossas cabeças, de Erica Ferrari, o avesso de um monumento equestre feito de entulho de demolições de prédios de São Paulo é erguido por uma estaca de madeira. Sua frágil sustentação aponta para um símbolo prestes a cair, desmanchar-se e voltar às ruínas de onde veio. A pata do cavalo levantada – que, segundo a tradição da escultura equestre, significa que o “herói” retratado morreu no campo de batalha – traz novamente a discussão acerca da fabricação de heróis e o monumento como uma forma de abstrair a violência de fatos históricos.

Em Direito de Resposta, de Frederico Filippi, o artista se apropriou de um fragmento do monumento ao Descobrimento das Américas, instalado em Madri, e o fundiu em uma placa, instalando-a clandestinamente junto ao monumento. Esta placa foi colocada como uma resposta ao etnocídio praticado nas Américas ao evidenciar que, enquanto os Europeus encontraram outro continente, os povos indígenas encontraram o abismo. Já Mapa se refere ao “descobrimento” e à reestruturação da geografia política a partir da invasão de um território, da instauração de Estados em cima do etnocídio de sociedades autóctones, da reestruturação das linhas e limites, tanto cosmológicos quanto políticos. Em Contextualizable, José Carlos Martinat se volta para a ideia da história e da memória como lugares de disputa, moldáveis, de acordo com o tempo e a quem se propõe fazê-lo. A não representação e a instabilidade compõem esse antimonumento.

Os trabalhos reunidos em Totemonumento buscam, assim, investigar a ideia de construções de narrativas históricas, a memória enquanto resistência e sobrevivência, representações e antirrepresentações – ou, como diria o historiador Jacques Le Goff, trata-se de confrontar as representações históricas com as realidades que elas representam.

Isabella Rjeille
São Paulo, janeiro de 2016.

Imagem da capa: “Face medial distal do úmero esquerdo, mostrando uma aparente ‘escultura em madeira’ devido a vários cortes e lesões ocasionados por uma colher a partir de ângulos diferentes. Embora os defeitos possam ser confundidos com aqueles causados por uma arma de lâmina curta, neste caso, as lesões foram causadas por um facão .

 

[1] Alois Riegl. “Os valores dos monumentos e sua evolução histórica”. In: O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem. 1ª edição. Tradução: Werner Rothschild Davidsohn. São Paulo: Perspectiva, 2014. p.31

[2] O historiador Jacques Le Goff, em seu ensaio Documento/Monumento compara a ideia de monumento com documento, considera que o documento é fruto de uma “montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho e o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados, desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo.” (Documento/Monumento. In: História e Memória. Tradução Bernardo Leitão (et al.). Editora da Unicamp, Campinas, 1990. P.547-548).