Pinturas Germana Monte-Mór

05/10/2024 - 01/11/2024

Simpoieticas

Ana Avelar

Os trabalhos recentes de Germana Monte-Mór operam com formas que pairam na iminência de um encontro. Figuras ovaladas fluidas são continentes e ilhas separados por rios e mares. Pingos de óleo se tocam em ambientes aquáticos, células e bactérias se aproximam. O mundo está silencioso, mas em movimento.

No início do século XX, artistas europeus pesquisaram as formas abstratas, olhando para a natureza como uma referência basilar. Esse interesse dizia respeito à promoção do debate científico, visando caracterizar o desenvolvimento de um léxico pessoal e, igualmente, universal; uma linguagem que comunicasse a diversos interagentes. Na linha de frente dessa empreitada estavam Kandinsky, Delaunay, Hilma af Klint, Klee, entre outros.

Segundo a pesquisadora alemã Linn Burchert, a arte abstrata pensada assim visava representar fenômenos naturais, não descrevendo-os, mas endereçando efeitos psíquicos e físicos que cor e forma poderiam causar e que fossem análogos àqueles vivenciados por nós no ambiente natural. Nesse sentido, as abstrações não eram elaboradas a partir de objetos visíveis traduzidos em imagens não figurativas; as abstrações representavam aspectos não visuais, porém sensíveis, que, embora estivessem no mundo e fossem, desse modo, “reais”, não detinham uma aparência visualmente apresentável.

Desse ponto de vista, a relevância da cor foi absolutamente central para Kandinsky, Klee e, notadamente, Johannes Itten, que entendia a criação artística como maneira de “criar vida”. Como escreve Burchert, o ritmo e o movimento, junto às qualidades cromáticas, eram especialmente importantes para o conceito de “imagem vitalizante” de Itten, considerando ele o movimento como pré-condição da vida. Do mesmo modo, a obra de Monte-Mór opera a cor estrategicamente, por meio de relações entre matizes e tons, para realizar-se, assunto estudado e testado nos cadernos da artista. Azuis e verdes a óleo encontram rosas; cores frias são justapostas a quentes; vermelhos mostram-se em gamas de tons (o asfalto que protagonizou obras anteriores agora é coadjuvante). Muitas cores são confinadas a um preenchimento; tantas outras vazam o plano, quase que se espalhando pela parede e escorrendo pelo chão.

Da mesma maneira que a cor era empregada por seus significados “espirituais” – ou seja, seus efeitos sobre a experiência humana – também formas gráficas de comunicação, desenvolvidas em outros tempos, inspiravam artistas abstratos. As inscrições pré-históricas, entre outras manifestações, foram referências cruciais como símbolos que sugeriam um tempo em que a vida exterior e interior humana eram inseparáveis, compartilhadas coletivamente e ainda intermediárias privilegiadas da comunicação espiritual.

Hans Arp escolheu a forma oval em vez da forma estática do círculo como elemento fundamental de sua poética. Essa forma de ovos, folhas e seixos associava-se, para Arp, à aparência do umbigo, do tronco e da cabeça humana – um “símbolo de metamorfose e crescimento orgânico”, expressando simultaneamente universalidade e mudança . Arp estava interessado nos processos naturais de nascimento, crescimento, metamorfose e morte. Como escreve a historiadora alemã da arte Isabel Wünsche: “A multidão de possíveis realizações, combinações e arranjos simboliza o movimento contínuo da natureza, da divisão celular microscópica às órbitas dos planetas”.

Monte-Mór, consciente da história da arte abstrata dita ocidental, a partir de seus debates, professora das disciplinas de desenho e cor, produz um vocabulário abstrato contemporâneo, a partir dos léxicos estabelecidos pelas vanguardas. Porém, dada sua localização histórico-geográfica, sua formação acadêmica e autônoma, sua experiência corporificada, a artista alia o conhecimento pictórico da gravura, do desenho, das histórias das artes modernas, atuais e ditas populares com o conhecimento antropológico. Atenta ao comportamento humano em suas relações sociais, linguísticas e biológicas, sua obra pictórico-escultórica (pensando nos contrarrelevos recentes com suas reentrâncias e cortes reveladores de outras camadas) acontece na experiência sensível, óptico-tátil e cromática, mas também no aspecto simbólico de longa duração que conecta esses signos com as ancestralidades humanas.

A crítica Lucy Lippard, reconhecida por sua abordagem feminista, mergulhou numa pesquisa sobre arte na pré-história na década de 1980. Nessa empreitada, por meio da qual desejava escapar das disputas do sistema artístico novaiorquino, percebeu uma “sobreposição” de seu fascínio com monumentos ancestrais e sua dedicação à produção artística que se manifestava. Por meio de uma colagem de tempos e espaços, Lippard apresentou ideias e imagens que, embora enigmáticas, habitavam lugares semelhantes em nossas imaginações.

Curioso é pensar que determinados símbolos, como o espiral, o meandro, a linha do horizonte e o oval, entre outros, atravessam transhistoricamente a humanidade. Se pouco os compreendemos racionalmente agora, muito os experimentamos intuitivamente. Segundo Lippard, o “conteúdo simbólico da abstração hoje é subterrâneo, inacessível para a maioria de seus espectadores” – por isso necessitamos que artistas nos narrem seus sentidos e significados . Não confiamos em nossa capacidade de interpretação ou mesmo de assimilação.

Para a crítica, sobrepõem-se tempo humano e tempo geológico, como nas séries de fotos “Pedra Mole” (2010) de Germana, nas quais rochas equilibram-se sobre rochas ou justapõem-se no fundo de um rio – série Âmbar (2008). Em muitas culturas até hoje, a pedra é uma metáfora da existência longínqua da natureza em relação à nossa efemeridade existencial, bem como a imagem do rio suscita a transitoriedade e a transformação.

Na realidade pré-histórica, humanos e não-humanos frequentemente colaboravam no fazer artístico, quando realizar arte inseria-se entre outros verbos de ação da vida humana. É fundamental perceber que, se a arte no passado era parte do existir humano, também sua compreensão era compartilhada pelos indivíduos. Em nosso tempo, a arte dita abstrata parece hermética para públicos mais amplos; no entanto, seu conteúdo, ao contrário do que se acredita, é relevante – dizendo respeito à evocação de conceitos e ideias suscitados. Aproximação e distância, peso e leveza, fluido e fixo, projeção e recuo – aspectos presentes na obra de Monte-Mór – são noções que podem ser observadas na natureza e estão ao alcance de todos.

O trabalho de Monte-Mór situa-se numa simpoiese – nos termos de Beth Dempster, como citado pela bióloga e teórica feminista Donna Haraway – de formas e cores: cada uma delas é essencial porque o trabalho acontece na relação cooperativa entre organismos num sistema coletivo, sem limites definidos. “A informação e o controle são distribuídos entre os componentes. Os sistemas são evolutivos e têm potencial para mudanças surpreendentes” . As ações simpoiéticas são criativas. Diante disso, aqueles que operam sozinhos revelam-se previsíveis, mesmo podendo se mostrar eficientes.

Lippard entende que a arte deve ter se originado da “percepção das relações entre humanos e o mundo natural” . Nesse registro, o vínculo entre o feminino e a natureza é recorrente em diversas mitologias, dizendo respeito aos ciclos de vida e morte – de Pachamama a Gaia e mesmo Nossa Senhora, cuidadora de vivos e mortos. Arp perseguia “símbolos da metamorfose e do desenvolvimento dos corpos”, que encontrou nos “ovais fluidos” – essa forma tão absolutamente representativa da vida desde sempre.

Assim, é possível dizer que Monte-Mór segue a máxima da natureza como medida das coisas ao criar momentos de iminência pautados na relação entre corpos, onde tudo é transitório. Brincando com formas ovaladas, ela se refere aos trabalhos como “fendas” e “buracos”. Segundo a artista, o que a mobiliza no seu fazer é “a vontade de revelar alguma coisa que não pode ser revelada”. Em outras palavras, mostrar aquilo que, embora exista legitimamente em nossa experiência no mundo, é quase insondável por meio do discurso – porém, plausível de escrutínio pela exploração artística.