O buriti é uma planta da família das palmeiras cujas folhas se espalmam em longas ráfias e os frutos doces pipocam em cachos que despencam de longos caules. Onde se vê um buriti, haverá água, como uma espécie de indicador de um oásis, pois é no meio de alagadiços, pântanos, veredas que a longa palmeira se firma e desenvolve. O buriti é o símbolo de um lugar: o bioma do Cerrado, que se alastra por boa parte do centro do Brasil, incluindo a região Oeste da Bahia. É também dessa espécie de planta que muitas pessoas da agricultura familiar tiram o seu sustento com a venda para as mais distintas cadeias de produção do fruto, das folhas e do palmito provenientes do buriti.
***Em frente a um pé de buriti, uma mulher encara o espectador, ladeada por uma bacia cheia de frutos da planta. Ela leva consigo um vestido com cores celestes intercalado com pedaços de pele de onça. Do seu pescoço, pende uma espécie de lenço, jogado para a parte de trás das costas. A indumentária dela, em tons cerúleos, parece aludir a uma armadura. Sua posição corporal está verticalizada na mesma direção do buritizeiro – como se seus pés no chão se confundissem com a própria raiz da planta. Ao redor dela, são possíveis de serem vistos uma máquina utilizada em grandes colheitas de agricultura e um avião que expele veneno de seus tanques. No topo da tela, um Pokémon exala um gás tóxico e veste um chapéu de cowboy, muito difundido dentro da cultura do agronegócio brasileiro.
Essa descrição é da pintura O último buritizeiro do artista Felipe Rezende. Esse mesmo título dá nome à exposição, que o artista apresenta na Galeria Leme, e nos incita a pensar em um cenário em que as dinâmicas de sobrevivência e subsistência entram em um complexo conflito com as máquinas e o avanço desenfreado da destruição do ecossistema – em que a própria humanidade está inserida.
A mulher que aparece na pintura é Domingas Guedes, conhecida na comunidade de Cacimbinha como Ozelina. Dona Ozelina, como muitas outras pessoas nessa região situada no oeste da Bahia, é descendente de povos indígenas e quilombolas que encontraram nessa geografia um lugar abundante em água e outros recursos naturais escondidos por um isolamento geográfico propiciado pelo cerrado. Essa é uma área, que recentemente vem sofrendo uma série de ameaças por parte de empresas privadas e pelo agronegócio, cujas atividades também tem contribuído com o envenenamento do solo e da água.
A pintura de Rezende citada anteriormente, nesse sentido, traz a natureza e as pessoas da terra para o centro, acuadas por uma sorte de ameaças – numa analogia espacial do que tem acontecido nessa região do Brasil. Longe de um caráter puramente denuncista, entretanto, o artista compõe essa narrativa se valendo de um rigor pictórico e de uma vivacidade visual muito particular. Não só pelo uso apurado da tinta óleo e suas propriedades, mas também justapondo figuras de diferentes tradições e pontos de partida, como a inserção da cultura do anime e também recorrendo à poética do retrato de corpo inteiro – linguagem que se sacralizou no interior da arte ocidental como uma forma de representar personalidades importantes dentro de um contexto social específico.
Nesse sentido, o ponto de virada trazido pelo artista é conjugar por meio de uma inteligência visual própria elementos que vão colaborar na incubação de um repertório imagético quase delirante que serve como ferramentas para a construção de uma diegese pautada pelas lutas sociais e de classe.
Felipe Rezende se vale da lona de caminhão como suporte para as suas pinturas. E essa preferência matérica não se dá tão somente por um dado estético. As lonas viajam, se deslocam fisicamente pelas estradas e as marcas desse trânsito ficam impregnadas em suas fibras. Remendos, linhas, nódoas, pegadas são detectadas quando olhamos mais atentamente para esse suporte empregado e isso atesta uma mudança temporal e geográfica do material. Assim sendo, o suporte elegido por Rezende é uma metáfora para pensar nos próprios fluxos das figuras que protagonizam suas telas. Pessoas essas que muitas vezes fugiram de suas terras por estarem ameaçadas ou porque buscam nas grandes cidades uma qualidade de vida melhor, que ocasionalmente nunca chega.
O percurso da exposição O último buritizeiro deixa essa última afirmação aparente. Se Dona Ozelina aparece imponente em pé frente ao buriti, na tela Semearam cinzas pra colhermos fósseis podemos ver um casal que repousa em cima de uma terra queimada. A porção escura na parte de baixo da pintura é interrompida por duas figuras humanas: uma que repousa em cima de dois blocos de construção e a outra que realiza um movimento como se estivesse prestes a levantar, mas que ao fazer isso se poria em ameaça pois cairia num buraco negro abaixo dos seus pés. No topo da tela, um esqueleto de uma figura indefinida parece ter saído de um sítio arqueológico. Aqui, Rezende nos fala sobre uma dualidade entre a pulsão de vida e de morte. Ao mesmo tempo em que assistimos uma terra arrasada, é em cima de blocos de construção que a mulher repousa – como uma tentativa de articular que, apesar de tudo, é possível realizar uma construção de uma nova vida. Talvez em outro tempo, talvez em outro lugar, pois a terra arrasada é uma terra empobrecida, queimada, envenenada, que enterra o sonho de que uma semente brote novamente.
É essa tentativa de um horizonte melhor que nos conduz a uma outra tela presente na exposição. O vendedor de caldos e o moedor de carne é apresentada com uma espécie de cabeçalho, onde observamos um céu quase apocalíptico, com uma atmosfera tomada por densas crostas de poluição. Abaixo um homem põe-se em uma posição de luta frente a uma parafernália que traz em sua saída um moedor de carne. Nessa máquina, em baixo relevo, está escrito “São Paulo”.
Lutar contra a máquina de moer gente é a realidade de muitas pessoas que saíram de suas terras de origem e foram para a maior metrópole brasileira. É através da massa resultante da moagem dessa gente e de seus sonhos que os pilares dessa sociedade são construídos. Na parte inferior oposta, uma catadora de materiais recicláveis aguarda o resultado do embate humano x máquina para que os resíduos dessa luta sejam recolhidos e reinseridos dentro dos sistemas de produção.
O percurso que Felipe Rezende nos mostra na exposição O último buritizeiro é uma mirada sobre a terra e a natureza como espaços de conflito, mas também se aproxima da biografia de várias pessoas que levantam voos de suas terras arrasadas pela ambição do capital na persecução de outras possibilidades de viver, de zonas de fuga. Esse fluxo de idas e vindas se confunde com a própria vida do artista – que tem estado num trânsito entre Salvador, sua cidade natal, Barreiras, no oeste baiano, e São Paulo, onde atualmente tem trabalhado.
***Guimarães Rosa foi conhecido por cantar os buritis. O buriti, para ele, era o próprio símbolo do Brasil. Um Brasil profundo que muitas pessoas desconhecem até hoje. Existindo um último buritizeiro, suas sementes cairão no solo encharcado das veredas, que gerarão outras e outras palmeiras, fazendo jus ao que “buriti” significa em tupi: natural da vida. Existindo um último buritizeiro, existirá o Brasil cantado por Rosa, aqueles das veredas, aqueles de pessoas que fincam os pés no chão como se fossem raízes, tal qual dona Ozelina em Cacimbinha.