Mil manhãs
Luis Sandes
A individual de Gabriela Giroletti na Galeria Leme, Mil manhãs, reúne telas de pequeno e grande formato que exploram as possibilidades da pintura, no que se refere à poesia, à técnica e ao conceito. O trabalho da artista discute a prática e a pintura, e demonstra um fundamental apreço pelo mundo natural e seu potencial lírico.
O título da mostra vem de um de seus trabalhos. Não sabemos se ele indica uma somatória de manhãs num mesmo dia, criando um evento extraordinário, ou uma sucessão de manhãs, abrindo-se infinitas possibilidades. Na verdade, muito do trabalho da pintora nos convida a navegar pelas portas de compreensão que ele abre.
Sua produção flutua entre ser figurativa ou abstrata, por exemplo. Isto é, em suas pinturas podemos ver remissões a cenas da natureza ou perceber formas, construções, cores e gestos que existem apenas no campo das explorações artísticas. Como exemplo, temos Meridian. Se os meridianos são as linhas que cortam em gomos a Terra, ligando Norte a Sul, definitivamente não podemos dizer que essa obra representa esse conceito geográfico. Não, ao menos, de uma maneira literal e objetiva. Se esse, e todos os outros trabalhos, serão lidos como sendo figurativo ou abstrato — ou ambos — é algo que caberá a cada visitante da exposição.
Além disso, há os títulos, que no geral são pouco palpáveis ou apontam para expressões ou coisas abstratas, ainda que com referências a ocorrências na natureza. Exemplos: Ano bissexto, Paisagem porosa, Floating on a moment, O inchaço do mar e o próprio Mil manhãs. São expressões líricas, não descrições factuais, do que está nas telas — talvez o inverso, isto é, talvez sejam representações pictóricas de expressões em português ou inglês.
Outras tensões também são exploradas: simples/complexo, micro/macro, natureza morta/paisagem, pintura/escultura, acidente/decisão, gráfico/livre, controle/caos. Em todas essas dualidades presentes na obra de Gabriela, não se opta por apenas um dos elementos. Antes, flutua-se ou se oscila entre eles, numa intencional pluralidade visual. Como exemplo, é possível pensar que um mesmo trabalho seja simples e complexo, simultaneamente.
Esta é a primeira individual da artista no Brasil. Se o que se vê nessa mostra é um trabalho maduro e complexo, é porque ela tem longa trajetória, desenvolvida no exterior. Participou de dezenas de coletivas, principalmente no Reino Unido e na França, mas também na Malásia e na Coréia do Sul. Realizou individuais no Reino Unido, na França e nos Estados Unidos.
Residindo em Londres, Reino Unido, desde 2010, Gabriela tornou-se artista naquele país, tendo realizado mestrado na prestigiosa Slade School of Fine Art, da University College London e, antes disso, graduação na Middlesex University, também naquela cidade. Vem dessa formação seu forte embasamento técnico e conceitual.
A partir disso, é possível entender a afirmação da artista: “meu trabalho é sobre prática, sobre o momento da pintura”. Ele se assenta em cor, forma, linha, luz e composição, que se encontram em cada uma das obras. E explora as possibilidades da pintura, seja em seus materiais, seja em linguagem visual. Ou seja, a pintura enquanto objeto, com textura, volume, corpo e estrutura física, ao mesmo tempo que nos apresenta uma imagem plana — outra dualidade.
Diante das restrições e das especificidades da pintura, a artista busca inventar caminhos de expressão. Exemplo disso são os formatos inusitados de suas telas (além do quadrado ou do retângulo) e as extensões para além das margens da tela, extrapolando-se seus limites.
Devido às diferenças de dimensões nas quais a artista trabalha, não é possível — nem seria razoável — que as soluções fossem as mesmas. Contudo, o trabalho de pinceladas, cores e formas não é destoante, mas complementar.
Trabalhando principalmente com pintura a óleo, mas também com tinta acrílica e géis, a artista constrói transparência e luz sobre volume. Como os materiais da pintura e muitas imagens representadas vêm da natureza, fecha-se o ciclo. Isto é, materiais e cenas referem-se à natureza, então são faces da mesma moeda. Gabriela toma a cor como ilusão, como material e como substância.
As pinturas podem ser vistas como são: coloridas, abstratas e orgânicas. Ou como referências à experiência, à decisão e ao tempo. De todo modo, elas são abrangentes e universais, e não é necessário passar mais história ou narrativa além do que foi posto nelas. Gabriela relaciona o ato da pintura não apenas com a natureza que pode ser observada e experienciada, mas também com nossa natureza interior e, desse modo, a pintura serve como uma grande metáfora para a vida, cheia de decisões, acidentes e riscos. Uma vida cheia de transformações e otimismo.
Nessa direção, a obra de Gabriela Giroletti é uma poesia visual. Assim sendo, seus significados amplos são concluídos por quem olha. Como todos os poemas, os trabalhos da artista não se colocam como proposições finais. O poeta Mario Quintana afirmou que um bom poema não explica tudo o que quis dizer. A pintura também não. Tomando a pintura como meio de expressão, comunicação e exploração de experiências pessoais, a pintora propõe poemas que serão lidos de maneiras individuais por cada uma das pessoas, que escreverão seus versos na interpretação.