heróis nunca celebram vilões – heróis apenas celebram vilões Igor Vidor

04/07/2018 - 15/08/2018

Interdito

Apesar de tudo, a camisa serviu como bandeira, exibindo a mancha do “isto foi”, comprobatória como um extrato impresso com as marcas do momento. A representação autêntica podia ter sido evitada. Foi difícil fazer uma imagem. Nada estava garantido e o texto se fez incapaz de tratar do irremediável. O que seria feito da camisa? A justiça não ofereceu garantia. O texto teve que ser escrito no passado. E a imagem se construiu significativa diante dos destroços. Vida e arte, coisas do passado. Tarde demais… para pedir atenção, cuidado, volte cedo, não fale com estranhos, proteja-se. Tarde demais… para se chegar no “isto foi”, conceito de Roland Barthes para fotografia, e ainda ter tempo de retroceder, voltar a cena, como no dispositivo remoto que só adianta para as imagens já gravadas. Os vestígios atemorizantes foram recolhidos “no exato momento em que seu objeto é pensado como objeto morto”. A história da arte foi pensada, a partir da morte, “um trabalho de luto”, nos termos de Georges Didi-Huberman, mas com a vontade de fazer reluzir.

Igor Vidor construiu uma exposição nos interstícios da memória, por entre conversas, convivências e notícias. Espantou-se com fatos vistos e narrados. Aproximou-se de fragmentos, cápsulas de balas de revólver, armas de brinquedo feitas por crianças, logomarcas de fabricantes de armas, trechos de falas de autoridades oficiais (de dentro e de fora da favela). Imaginou, com isso, uma exposição feita no passado, a partir de reflexões, como a frase “heróis nunca celebram vilões; heróis apenas celebram vilões”. Mas, o que foi tratado se referiu a uma narrativa de heróis e vilões? Vilões, de algum modo, sempre foram heróis, pois o peso narrativo, no cinema e na vida, colocou-os em paridade horizontal: protagonista e antagonista. Se a narrativa se deu em torno do herói, também se fez no âmbito da tragédia.

Na exposição de Vidor, refletimos: qual foi a consequência de tanta visibilidade? Que a violência é “força em demasia” já sabemos desde acordar e ler os jornais diários, os mesmos que o artista se utiliza para produzir uma colagem. Antes de Marie-José Mondzain dizer-nos que uma imagem pode matar e que a violência é “potência antes de ser ou não um ato”, já sabíamos por meio do contato com a realidade vivida, ouvida, vista, a partir do luto da história, que prevaleceu diante de um vir-a-ser utópico. O que foi escrito, fotografado e apagado com água e vassoura, também o foi escovado a contrapelo, quando a história só exibe consequências. Cotidianamente, a convivência com as imagens fez-nos perceber uma força que não cabe mediatizar. O que fazer diante de Auschwitz?, a pergunta de Theodor Adorno a todo instante retorna. E a afirmação de Mondzain regressaria, agora, como perplexidade “onde e como a violência das nossas imagens irá gerar a força de que necessitamos para vivermos em comum”, frase que deveria ser seguida de um ponto de interrogação. A questão complexifica-se ao atingir a lógica dos desejos. Sabemos que as imagens se tornaram paixão, sudários, retratos.

Igor Vidor demostrou perplexidade ao ver crianças apaixonadas por armas. Crianças que exibiam miniaturas de armas como pingente de cordões. Armas serviam, assim, como amuletos, vontade de futuro. Crianças que, ainda assim, foram para a escola, uniformizadas. A lógica das armas foi a mesma da lógica dos brinquedos. E a presença institucional da escola existiu tanto quanto a do crime organizado. A criança guardou da brincadeira a vontade de reconstrução. O mundo dado só interessou no momento em que se pôde virá-lo do avesso, fazê-lo em outro material, reconstruí-lo em papel de pipa e papelão. Por isso, armas foram amuletos, entre o brinquedo e o sonho, entre monstros e quimeras.

A exposição de Vidor coloca-nos, a todo instante, diante da consciência de que se desenhou uma horizontalidade entre o herói e o vilão. E o herói, ainda que avisado por todos, teve que cumprir seu destino. Esta sempre foi a lógica trágica, difícil de mudar. A exposição constituiu-se como narrativa que apagou diferenças. Só sobrou o passado da história. A mãe pôde guardar para si apenas um filho contornado pelo afeto, por singularidades, como uma carne nobre. Mas, esta nobreza, para ser conservada, necessitará de sal e sol. Terá que ocupar as lajes, suar sob as camisas cobrindo o rosto, vestir gravatas. E será, apesar de toda clarividência de Tirésias, cego que avisa Édipo sobre os interditos que serão cometidos pelo herói, impossível não cumprir o destino. Mães, inevitavelmente Pietás, Nossa Senhora das Dores.

Mas, o que as instituições fizeram com isso? Foi comum ouvir autoridades dizerem que esse problema é municipal, estadual, federal. E aqui poderíamos questionar o que faz a violência numa galeria de arte comercial? Porém, o problema agiganta-se e se faz onipresente. Quantos mais vão precisar (…) para que, apesar de tudo, imagens sejam feitas? A insurgência de alguns trabalhos de arte só corroborou com o fato de que a história da arte sempre lidou com o luto. Teria sido importante pensar nisso antes. Antes de ser necessário colocar, em vez de uma bandeira do Estado, a do fabricante de armas na entrada da galeria.

Marcelo Campos
Junho 2018

 

 

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