Fulgor Atlântico Tiago Sant'Ana

08/02/2025 - 22/03/2025

TIAGO SANT’ANA – FULGOR ATLÂNTICO

“De noite, se é de ser, o céu embola um brilho. Cabeça da gente quase esbarra nelas. Bonito em muito comparecer, como o céu de estrelas, por meados de fevereiro! Mas, em deslua, no escuro feito, é um escurão, que peia e pega”.

João Guimaraes Rosa. Grande Sertão: Veredas.

Em língua iorubá, o conceito de itutu define uma noção estética marcada pela expressão calma e recolhida, quase fria, transmitida pelo ori, a cabeça, foco de representação do iwa, o caráter ideal, e lugar de onde se irradia o axé, a energia vital. O itutu se manifesta no olhar fixo, nos lábios selados, na fronte sóbria, tanto quanto nos gestos de generosidade, a mais alta forma de moralidade nos termos tradicionais iorubá. Itutu diz respeito a um controle das emoções, um equilíbrio transcendental que atravessa o corpo e assegura ao espírito uma forma de elevação que dignifica e enobrece o sujeito. O historiador da arte americano Robert Farris Thompson escreveu que “a serenidade (…) é parte do caráter, e este tem como objetivo o costume comum. E, à medida que vivemos de forma generosa e discreta, e demonstramos compostura diante das pressões, nossa atitude, nossa aparência e nossos atos assumem gradualmente um poder virtual real” . É desse estado de poder virtual, de plenitude e de paz interior diante das coisas ordinárias da vida, que parecem estar investidas as figuras concebidas por Tiago Sant’Ana em sua produção recente. O conceito de itutu informa sobre o estado de alma desses personagens e, mais do que isso, orienta nossa percepção sobre o próprio trabalho do artista.

Em Fulgor Atlântico, Tiago Sant’Ana amplia e aprofunda sua pesquisa sobre os elementos para a construção de uma memória do Atlântico Negro, enfrentando, dessa vez, o desafio de construir um universo ideal, onde a dignidade da população negra em diáspora é erigida pelo silêncio, pela atenção e pela humildade. Quando emprego a palavra “universo”, refiro-me à sua origem latina, produto da combinação do prefixo *un, que significa “um”, “uno”, com o radical *vorsum, particípio perfeito do verbo vertere, que pode significar “voltar”, “girar”, “revolver”. “Tudo em um só” ou “tudo girando como um”, significado primeiro da palavra “universo”, é o que se vê no conjunto de desenhos inéditos, em torno do qual a mostra se organiza. Em um deles, apenas deduzimos um corpo submerso na água, que se propaga em ondas por toda a área do papel, a partir de um rosto que se sobressai como um relevo. Se esse rosto resiste contra um naufrágio ou se ele emerge da água, é dúvida que se dissolve diante dos outros desenhos, como, por exemplo, aquele em que um homem parece respirar lentamente, com semblante tranquilo, olhos serrados e queixo ligeiramente voltado para cima, ou aquele em que outro homem deita sobre uma almofada quadrada, levando uma de suas mãos à cabeça enquanto a outra se apoia sobre a barriga. Há algo em comum entre essas figuras, para além da textura metálica no tratamento da pele, da qualidade escultural da topografia do rosto ou do caráter místico de suas fisionomias, que sugerem um estado de transe ou torpor: esses personagens parecem fundar, imóveis, seu próprio universo, alheio ao mundo físico, manifestando, por um lado, o itutu, e, por outro, a contemplação, em detrimento da ação.

A economia é um assunto frequentemente discutido por Tiago Sant’Ana. Se, em suas primeiras obras, a economia era uma entidade, quase um fantasma materializado nas heranças do trabalho escravo, voltadas, portanto, para a produção, distribuição e consumo de bens para abastecer a elite colonial (tematizada na alvura do açúcar ou da roupa lavada), dessa vez, a economia se volta para a subjetividade do homem negro em prolongado de repouso. Trata-se, nesse caso, de uma manobra inteligente que visa a reversão da economia física, baseada na execução e no dispêndio de energia, em economia psíquica, baseada no equilibro de energia interior e no exercício da subjetividade. É preciso lembrar que os direitos trabalhistas, instituídos no Brasil em 1943, com a Consolidação das Leis Trabalhistas, não atingiram a maior parte da população que, a partir de 1888, deixava o trabalho escravo para se dedicar ao trabalho assalariado, baseado sobretudo na força, na repetição e no serviço. O direito ao descanso, ao ócio e ao lúdico, premissas da conquista da cidadania plena, nunca esteve inteiramente assegurado à população negra do país, cujo acesso às garantias legais sempre foi precariamente limitado, quando não ameaçado.

As escolhas artísticas de Tiago Sant’Ana a um só tempo narram um cotidiano ideal, em que o repouso substitui a luta, a inércia substitui a força e a imaginação substitui a urgência, e promovem, com remarcável elegância e assombrosa coerência, um reencontro do ser-negro com seu aparato epistêmico fundamental, através de uma aliança inabalável entre história e forma. Assim, a economia, de tema, se transforma sorrateiramente em solução plástica. O profundo sentido de composição e organização espacial indica um artista com ampla prática de ateliê, microcosmo onde tudo se organiza sob o mais absoluto controle: tudo está onde deve estar, não há excessos e cada linha percorre uma rota precisa até encontrar seu destino, sem hesitações, como se a medida e a limpeza formal restituíssem, a cada personagem, o itutu sistematicamente neutralizado e usurpado ao longo de cinco séculos. Se economia é a gestão dos meios visando suprimir desperdícios ou excessos, então ela se manifesta ainda na cor azul profundo, que atribui aos personagens um senso de certeza próprio do iwa (caráter) e do axé (energia vital), incrementado pelo itutu, cujo frescor não poderia ter outro tom.

O repouso voluntário dos personagens de Tiago Sant’Ana retoma um recurso muito recorrente em seu trabalho: a ação da gravidade. O queda do açúcar sobre sua cabeça até que o monte branco cubra seu corpo, em “Refino #2”, a pilha de roupa branca que encobre o rosto do sujeito que a carrega, em “Passar em branco”, o artista protegendo os sapatos de açúcar para não os deixar dissolver na água, a escolha dos objetos de açúcar (os tamancos, o barco, a âncora, os ladrilhos), são apenas alguns exemplos que nos permitem reconhecer, em sua prática artística, o peso como uma linguagem. Ora, se linguagem é qualquer sistema de símbolos, sinais ou objetos impregnados de significação, o peso, em seu trabalho, é o elemento que nos permite reencontrar as histórias naufragadas no Atlântico Negro durante o tráfico negreiro. É para o mais profundo chão que suas figuras nos arrastam quando, por exemplo, nos fitam fixamente de baixo pra cima, como gesto de ameaça ou de promessa. No entanto, como na reversão semântica da economia, o peso, analogamente, passa da grandeza física à experiência afetiva. O peso desses homens solitários nos absorve em um mergulho na própria consciência, mas, ao mesmo tempo, sugerem, pelo olhar melancólico, um mergulho em sua história coletiva, perdida no fundo do oceano. É lá que a história da baleia “de voz dissonante” se faz metáfora para as vozes inutilmente ecoadas no escuro das águas salgadas, onde não há mais brilho e o azul não tem vez. É no fundo do oceano onde um homem de semblante pacífico se vê afundado ao se deixar capturar por um anzol. É no fundo do oceano que se faz sobre as mãos onde a história deverá ser reescrita.

No universo fundado pelo Fulgor Atlântico, o brilho da luz que atinge o corpo é o mesmo refletido pelo cristal de açúcar, pairando sobre a história como uma advertência para repensar seus termos. Afinal, é isso que parece desejar o homem diante do mar, ou diante do óculo escuro, cujo rosto não vemos, mas cuja expressão, serena e mística, conseguimos deduzir.

Renato Menezes, historiador da arte e curador
São Paulo, 27.01.2025

 

🌍Faça uma visita ao Viewing Rooms da exposição.

WhatsApp