Ana Elisa Egreja Fazer realidade

18/09/2021 - 19/11/2021

ANA ELISA EGREJA | FAZER REALIDADE

texto crítico: Moacir dos Anjos

Em conjunto recente de pinturas, Ana Elisa Egreja dá seguimento ao programa artístico que possui já década e meia, ainda que continuamente altere algo nele ou expanda suas bordas, tornando-o mais denso e largo. A cada movimento feito, coloca-se diante de desafios antes ausentes ou que careciam, no passado, de urgência de enfrentamento. Em sua obra, as coisas permanecem e mudam; estão lá e se ausentam. Nela, não há desvio dos paradoxos eventualmente encontrados, mas o cultivo deliberado deles.

Cozinha campestre (180 x 270 cm): Sobre o balcão principal da cozinha, uma variedade de grãos, frutas e outros alimentos, talvez prestes a serem combinados, cozinhados e comidos. Há ali, contudo, também uma ave. Viva. Não parece, estranhamente, destoar da composição da cena. Prateleiras guardam formas, tigelas e utensílios diversos. Dentro do armário abaixo do balcão – aberto não se sabe por quem –, entreveem-se pratos pintados.

Tanto antes como na nova série, as pinturas chamam a atenção, de imediato, por sua verossimilhança com o que cada um que as examina conhece do mundo. Elas solicitam e recebem, do olhar do outro, a consideração de formas, cores e texturas encontradas em ambientes domésticos, manifestando um interesse por arquitetura e pelos modos como se arranja, nesses recintos, tudo o que serve à vida comum. Espaços internos e coisas ordinárias reproduzidos em planos pintados de modo “realista”, para usar adjetivação talvez inadequada, posto que o real nunca se deixa capturar por inteiro em processos de representação visual ou escrita. São trabalhos que teimam em replicar o que existe como pintura, sendo, ao mesmo tempo, assumida e irrevogavelmente falhados como seus equivalentes sensíveis. A quem sustenta o olhar por um tempo diante deles, oferece-se, portanto, não somente a sensação de proximidade do que é apresentado, mas também a impressão forte de estarem diante de algo distante do que é já conhecido. Experiência produzida, porém, de modos diferentes nos trabalhos mais antigos e nos novos.

Sala florida (180 x 270): De um recinto que não se sabe ao certo o que é, enxerga-se um outro: parte de uma sala de estar vazia de gente, cuja entrada tem forma de arco. Móveis e objetos parecem pertencer a um tempo distante das muitas pinturas vistas ao fundo do ambiente. As paredes dos dois cômodos são inteiramente cobertas com imagens repetidas de flores vermelhas; trazem, para dentro da casa, a lembrança do que só existe fora dela.

Se na série Jacarezinho – conjunto de pinturas exibidas em 2017 na Galeria Leme – Ana Elisa Egreja pintava cenários construídos no interior de uma única casa, agora retrata cenas observadas em várias residências, algumas delas combinadas em uma imagem somente. E se antes inseria elementos naturais inesperados para aposentos usualmente habitados por gente – galinhas ocupando escadas, polvos ocupando banheiros, um pequeno lago onde havia um chão de sala –, nas novas pinturas tal estranhamento quase não mais existe. Mesmo as frutas, que na casa anterior pareciam querer tomar conta de uma cozinha inteira, parecem assumir, nos novos espaços pintados, presença mais prosaica e discreta. O que une as duas séries, preservadas suas diferenças, é a atmosfera que a artista inventa com tintas dispostas sobre telas: uma que acolhe o já sabido, mas que também confunde irremediavelmente o olhar. Atmosfera de familiaridade e simultânea estranheza em cenas que se avizinham das ambiências que escritores latino-americanos adeptos de um realismo dito fantástico por tempo criaram em textos – Bioy Casares, Gabriel García Márquez, Juan Rulfo, Julio Cortázar e outros mais. Mesmo nas pinturas recentes, em que o supostamente absurdo é abrigado de modo mais esparso e silencioso, há sempre algo que perturba o conhecimento prévio detido sobre o mundo ali representado.

Cozinha Pennacchi (150 x 200 cm): Na parede acima do balcão, azulejos pintados pelo artista na cozinha de sua casa. Pinturas que narram cenas quase idílicas de colheita, de pesca e de partilha de comida. Sobre o mesmo balcão, frutas bem arrumadas e bichos mortos espalhados, incluindo pequenos pássaros que usualmente não são comidos por gente. Apenas um deles aparenta estar vivo, testemunha possível de uma natureza que desmorona e morre.

O emprego do termo realista para qualificar essas pinturas requer, ainda, outra ponderação: se a denominação corriqueira se impõe ao olhar, é possível argumentar que seja menos pelo evidente reconhecimento das coisas pintadas – há meios melhores para promover essa fidedignidade, afinal – e mais pelos modos como as pinturas são construídas. Quanto mais de perto se examinam as telas, menos distinguíveis (e atraentes) se tornam os referentes ali representados e mais aparentes (e atrativos) se fazem as marcas quase tácteis das pinceladas que as constituem como imagens. Marcas de pincéis finos que cuidadosamente distribuem, de várias maneiras, tinta a óleo sobre telas porosas. Pincéis que deitam e espalham uniformemente ali a tinta usada, que a eriçam para o alto e para fora do plano, que a dobram para um lado ou para outro, que avizinham ou afastam cores distintas, que as sobrepõem em acordo ou em conflito, que criam opacidades e transparências em desafio ao que pode e ao que não pode ser decifrado pelo olhar. Marcas de pincéis que poderiam ser catalogadas como um léxico de pintura com o qual a artista inventa e descreve mundos a partir dos modos como observa o lugar que habita. Cada pintura tem um corpo feito de várias partes articuladas em sintaxe própria.

Cinderela (160 x 130 cm): Da sala de um apartamento de chão de tacos enxerga-se, para além das esquadrias de madeira e vidro que vão do piso ao teto, a paisagem de uma praia – areia, mar, coqueiros. O vidro que separa os dois espaços ali pintados é jateado, diminuindo a nitidez do que se passa lá fora. Mas pertence ao exterior o único ser vivo que habita a sala, em invasão/subversão do lugar: insetos feitos de protuberâncias de tinta escura fixados no piso de madeira e no vidro da janela.

Há também, embutida nos trabalhos, uma ética. Ética feita, primeiro, de um elogio à prática obsessiva e incessante de registrar e colecionar cenas e ambientes – anotando tanto as características amplas que os definem quanto os mais escondidos detalhes que os compõem. Coleção de imagens (fotografadas ou de algum modo gravadas na memória) que depois são recombinadas para invenção de pinturas; para inventar de novo, através de espécie de colagem pintada, o que se pensava ser já conhecido. Ética feita, ademais, de um elogio à desaceleração do tempo. O tempo de fazimento dessas pinturas tem a duração do que é necessário, e não do que é estabelecido desde outro canto. Um tempo que rejeita ser calculado por métricas produtivistas, valorando resistência e desejo. Um tempo incontável que é incorporado em extensas superfícies cobertas por tinta.

Frank Lloyd Maragogipinho (150 x 200 cm): Há uma sobreposição de planos e arranjos, todos pintados nas cores terrosas própria das coisas ali representadas. Paredes de tijolos da casa modernista, vasos artesanais de barro dispostos acima do queimador da lareira, improváveis pratos feitos da mesma matéria ladeando aqueles. Uma espécie de altar profano que celebra, na sua existência inventada, o poder de a pintura desmanchar distâncias entre quaisquer ambientes e coisas.

Em todas as cenas pintadas por Ana Elisa Egreja, há sempre a evocação de uma variedade de acontecimentos que poderiam ser a elas relacionados. Nenhum deles heroico ou portentoso, mas ligados a fatos desimportantes da vida que dia a dia se repetem. São quase todas representações de cozinhas ou salas de estar, sempre feitas a uma distância suficiente para capturar muitos dos elementos que lhes conferem singularidade. E sempre feitas a partir de uma posição de frontalidade quase respeitosa. São, ademais, pinturas grandes o bastante para que a relação corporal estabelecida pela artista com os lugares que pinta possa ser replicada pelos corpos dos que as encontram já prontas e com elas se medem. Não como simulação de lugares onde se pudesse adentrar, mas como aberturas ilusórias para um mundo ao mesmo tempo semelhante e em desacordo com o que existe, através das quais aposta-se ser possível enxergar o que lá se passa. Expressão de uma vontade de ver para além de onde se está também patente nas imagens de janelas que aparecem com destaque em vários trabalhos; janelas que conduzem o olhar para fora dos ambientes fechados de onde são feitas as cenas pintadas.

Natureza morta mexicana em campos (175 x 200 cm): Dentro da sala, uma mesa forrada com toalha decorada onde estão postas frutas, legumes e algumas flores – mais pássaros de madeira pousados sobre os alimentos. Cena iluminada por luz que vem de fora, do jardim exuberante povoado de bichos que há depois da ampla janela de vidro. Aves e macacos quase translúcidos misturam seus corpos ao céu e às folhas. A pintura desmonta a pretensão de replicar mundos, afirmando-se como construtora deles.

Se o tamanho das pinturas se mede pelo corpo da artista e de quem mais as olha, chama a atenção o fato de nelas não haver a presença de gente, mas somente indícios de sua existência. Móveis, objetos, alimentos; há muito de quase tudo, menos quem se serve dessas coisas todas. Como se as pessoas que habitam aqueles espaços de convívio tivessem saído dali há pouco. Como se os trabalhos sugerissem acontecimentos comuns suspensos – uma conversa, a preparação de uma refeição –, que só pudessem ser retomados quando a feitura das pinturas fosse estancada. Como se Ana Elisa Egreja buscasse responder, com tinta entranhada na tela, questões um dia postas pelo poeta Carlos Drummond de Andrade: “Como é o lugar / quando ninguém passa por eles? / Existem as coisas / sem ser vistas?”. Como se fosse possível pintar esses espaços vazios de gente sem estar presente e implicada neles. Sua obra, como dito, não desvia de paradoxos; antes, os cultiva.

Pratos borrão (dimensões variadas): Agrupadas sobre a parede em conjuntos, dezenas de pinturas circulares simulando pratos de louça remetem aos pratos vistos inclusos em outros trabalhos, como se daqueles fizessem parte. Pratos que abrigam frutas, legumes, verduras, ovos, peixes e crustáceos criados por meio de um inventário extenso e rigoroso de gestos feitos com pincéis que movem e animam tinta. Como a lembrar que pintar é fazer realidade, mesmo quando parece replicar o que já existe.

Ana Elisa Egreja - Fazer realidade

Captação e edição de vídeo: Guilhotina Audiovisual