Atos Falhos Marcia de Moraes

23/06/2015 - 01/08/2015

Atos falhos

O conjunto apresentado em Atos Falhos parece atravessado por um movimento contínuo que se interrompe e se prolonga a cada desenho. À imagem de turbilhões contidos, as obras vibram com uma pulsação interna, ritmada por um eterno desencontro entre pleno e vácuo, entre cor e branco do papel. Como dois líquidos imiscíveis, esse jogo ambíguo de repulsa ou atração entre polos opostos esboça uma dança de acasalamento. Permanece a dúvida se o vazio está prestes a ser preenchido ou se os campos cromáticos se dissolverão no vácuo. Apesar de retomar as características de seu vocabulário formal, o aparente fluxo que se estende nas composições mais recentes de Márcia de Moraes e o embate nelas contidos apontam para um renovado impulso, no qual se dissimulam fissuras e descontinuidades.

Essa intensidade se manifestaria já no seu processo inquieto, na confrontação direta com o papel, um campo de batalha no qual se contrapõem a paisagem interna e subjetiva da artista ao elã que move sua mão. Desenhando sem estudo prévio sobre o papel, Márcia de Moraes utiliza o desenho anterior como parâmetro para elaborar uma nova composição. À maneira de um cadavre exquis, é ele que sugere o traçado, as zonas de cores e as linhas de força. Depois de delinear a estrutura com o grafite, a artista determina as zonas do papel a serem preenchidas com lápis de cor. Permitindo ser guiada pelo acaso e pela intuição, a mão consente que surpresas possam emergir à superfície do desenho.

As surpresas tomam a forma de motivos estilizados derivados de elementos concretos como piscinas, dentes ou ganchos que pontuam as composições sinuosas, muitas vezes espiralares de Márcia de Moraes. Esses detalhes insólitos – que em algum momento chamaram a atenção da artista – ressurgem da cadência frenética do cotidiano na qual se perderam. Se essas figurações são desprovidas de toda a sua qualidade narrativa, elas se insinuam com a violência latente de silhuetas pontiagudas e incisivas que penetram o território da abstração flácida que caracteriza o trabalho da artista.

Esses elementos intrusos surgem em composições prismáticas que, nesse grupo de trabalhos, mais do que em anteriores, suscitam a ruptura do olhar. De fato, em trabalhos prévios o olhar do espectador podia firmar-se por um agenciamento circular e centrípeto das formas que eram claramente delimitadas nos quatro cantos do papel. Uma tal contenção do olhar nos cernes desse território gráfico sugeria uma unidade plena e viva que abraçava tanto a luz quanto a sombra, o cheio e o vazio. Além disso, as zonas brancas apareciam como filetes, frágeis tiras diante das predominantes superfícies de cores vibrantes. Atualmente, por mais que elas conservem uma harmonia compositiva em que as massas de cores se equilibram, é mais difícil discernir uma ordem subjacente ao desenho, que parece ser transpassado por uma corrente vertical ou horizontal, fazendo com que o olhar seja levado para fora dos limites da folha. Os vazios ganham em proporção, invadem toda a superfície dos desenhos, em uma trama intrincada de lacunas. É no ato de olhar que o hiato dilatado entre forma e fundo deve ser suprido.

Não à toa, é neste momento em que a ideia de ruptura se faz cada vez mais presente na sua obra, que Márcia de Moraes começa a desenvolver um trabalho de colagem. A artista utiliza partes de seus desenhos, resquícios de potenciais composições, e os agencia em uma disposição nova que resulta em um emaranhado complexo de tramas e cores. A fragmentação é aqui materializada por uma descontinuidade efetiva que se dá não somente pela interrupção do traçado, mas também, em um plano fisico, pela sobreposição dos diferentes planos intrincados, que aparece como um caleidoscópio de equívocos.

A ideia de encaixar diferentes peças, por sua vez, também contamina a sua produção de desenhos quando introduz um conjunto fracionado em diferentes partes. Os quinze desenhos que compõem Território, por exemplo, funcionam como peças de um quebra-cabeças. Por um lado, é evidente uma certa continuidade da paleta de cores, das tramas utilizadas para preencher alguns campos do desenho assim como a sensação de que um mesmo gesto delineou as linhas com o grafite. No entanto, trata-se de um quebra-cabeças disfuncional uma vez que a junção das diferentes partes não coincidem. Esses desencontros e os vazios que eles geram, mais uma vez, frustram a promessa de um conjunto homogêneo. O olho se mantém rente às bordas para preencher essas lacunas.

Cada vez mais, essa dinâmica de frestas que fissuram os desenhos e colagens de Márcia de Moraes, parecem induzir um deslocamento do olhar. Essa ideia de quebra remete à noção psicanalítica de “atos falhos”, que dá nome à presente exposição. Conceito desenvolvido por Sigmund Freud no início do século XX, os atos falhos seriam erros em ações ou na fala causados pelo inconsciente, brechas no discurso e na lógica do pensamento linear. O fato é que tanto no seu processo – no qual uma obra, assim como seus eventuais erros ou defeitos, são o ponto de partida para a próxima – quanto na condição de esboço sugerida pelos erros e traços de grafite deixados aparentes, ou ainda na presença de alguns elementos figurativos provindos do cotidiano, o trabalho de Márcia de Moraes parece remeter a tais deslizes de memória ou da fala sem motivo aparente.

Esses comportamentos compulsivos e atalhos inconscientes, segundo o psicanalista, teriam como intuito a realização de um desejo profundo e dissimulado. Nessa perspectiva, talvez a aspiração de Márcia de Moraes pudesse se cristalizar na remanescente busca pela perda de referências e pela vertigem suscitada no oscilar entre repetidos lapsos e uma continuidade que escapa pelas bordas do desenho.

Olivia Ardui
Abril 2015