Um grão de pigmento é cor ou poeira?, Centro Cultural São Paulo, 2024

Por Guilherme Texeiraa

Uma série de outdoors que refletem o horizonte; a troca de pneu de um Fiat Uno que teve uma de suas lanternas substituídas por uma garrafa térmica vermelha e seu capô recoberto de rochas; um aceno à Utopia; Um gráfico entre palmeiras que fazem sombra à uma senhora; um homem apoiado em uma enxada observando o horizonte e suas linhas elétricas; uma panela de pressão; um cavalo, um lagarto; o sono e um cacho de bananas.

São essas algumas das imagens que compõem Todas Sorte de Remendos, do artista soteropolitano Felipe Rezende (Salvador, 1994). Dispostas sobre uma lona de caminhão usada, a miríade de pinturas opera aqui como uma colagem – ou melhor, costura, utilizando-se do mesmo procedimento aplicado pelos loneiros – profissionais responsáveis pela manutenção das lonas -, para o remendo das coberturas, articulando o o arquivo pessoal de imagens e referências angariado pelo artista no decorrer dos seus muitos deslocamentos entre Salvador, Barreiras (no interior da Bahia) e São Paulo (onde reside atualmente).

Com uma prática que entende a geografia e o deslocar-se por ela como um exercício contínuo, ao mesmo tempo que entende o gesto da pintura e a poeira de uma estrada como traços constitutivos na formação de toda e qualquer imagem, não é de se surpreender que a potência do trabalho de Felipe Rezende habite exatamente o ponto onde o cotidiano exerce sua maior influência sobre aquilo que nos rodeia, ao mesmo tempo que desvia sua funcionalidade a partir de um jogo referencial onde ficção e realidade se sobrepõem.

Por meio do desenho e pintura, os trabalhos de Felipe exercem sobre a imaginação do espectador um espaço, uma ideia do fundo das nossas memórias que toma a superfície daquela lona, emulando algo estranhamente familiar e distante. Talvez seja por meio de alguma reminiscência da ideia de viagem, que opera subconscientemente em nós na dissimulação daquele suporte que nos parece tão familiar, ao passo que não o reconhecemos deslocado de sua função original, ou na execução das referencialidade da cultura pop, música e cultura popular e de trabalhadoras e trabalhadores que habitam a composição de modo constelacional, tornando-nos testemunhas de nós mesmos e de nossa história.