Texto pela ocasião da Viewing Room, RV Cultura e Arte, Salvador, 2021. Por Uriel Bezerra

Trabalho e millennials

Poucas vezes tive a oportunidade de conversar com Felipe Rezende, mas sei que alguns eventos importantes atravessam nossas trajetórias. Pertencemos às famílias de trabalhadores de classe média e a uma mesma geração, popularmente chamada de millennials, ou geração Y. Quando recém-chegados ao mercado de trabalho, fomos surpreendidos por mudanças profundas – talvez irreversíveis -, tal como a chegada dos aplicativos e a aprovação de uma reforma trabalhista há pelo menos três anos.

Como consequência, vivemos atualmente sob a regência de duplas jornadas de trabalho e múltiplas funções. No caso dele, felizmente estas se completaram. Desde o início de sua
trajetória artística, Felipe encontrou no desenho um lugar privilegiado para a produção de narrativas fantásticas, grotescas e/ou satíricas, apoiando-as em imagens do cinema, do fotojornalismo e de arquivos pessoais. Concomitante a essa prática, durante quatro anos trabalhou na manutenção e restauro de uma grande maquete de Salvador (BA), onde lidava com uma base de dados cartográfica. Nesta, a sua perspectiva das ruas, a qual incluía pessoas, objetos e modos de inventar a cidade, era sintetizada na visão vertical e estratégica de um mapa. Foi então que, a partir de 2018, passou a se dedicar a um universo que vivenciará em escala humana, o trabalho operário, sobretudo o que ocorre nas ruas.

Para a primeira exposição individual, intitulada Ladeira da Fonte (2019), apresentou uma pesquisa desenvolvida em um canteiro de obras pelo qual passava cotidianamente na capital baiana, situado no endereço que dá nome à mostra. Depois de estabelecer visitas mais prolongadas e vínculos com os trabalhadores, começou a catar os refugos da construção. Lajotas de cimento e pedaços de concreto tornaram-se suporte e parte da composição para pinturas de gestos ou objetos encontrados naquele espaço.

Ao mesmo tempo em que buscou apresentar alguns clichês, entre cones, uniformes e cavaletes, o artista também deu destaque às distensões da rotina: a pausa para o lanche, a
pose para a foto, ou a volta para casa ao fim do expediente. A obsessão por essas imagens lembra a obra de Harun Farocki. Na videoinstalação “A saída dos operários da fábrica em 11 décadas” (2006), por exemplo, o diretor reuniu um arquivo de imagens cinematográficas que abrange mais de um século. Já em Termos de comparação, de 2007, Farocki interpõe cenas de interação entre operários da construção civil em Burkina Faso, Índia, Alemanha e França. Aqui, como na obra de Felipe, é importante perceber as nuances que aproximam e distinguem trabalhadores, bem como o olhar de quem produz as imagens.

Na série de desenhos O Passante, que acompanha também essa viewing room, Felipe Rezende dedicou-se a uma diversidade de atividades nas modalidades formal e informal. A partir de sua passagem pelas cidades de Salvador e Barreiras (BA), onde atualmente reside, apresenta situações em grafite e nanquim que extrapolam a apresentação de gestos vistos em Ladeira da Fonte, lançando mão de um recurso que lhe é familiar: a ficção. Cada uma se assemelha a um pequeno delírio, no qual parece tentar atribuir alguma ludicidade a funções pouco reconhecidas socialmente. Algumas, inclusive, poderiam ser partituras para uma performance.

O conjunto apresentado pelo soteropolitano pode gerar um incômodo, seja pela ausência de conflito, ou por não apresentar imagens de insurreições contemporâneas, tal como o
movimento dos garis no Rio de Janeiro, em 2014, ao qual também se aliaram artistas e outros agentes do campo cultural; ou a greve dos entregadores de aplicativos, ocorrida em 2020. Não obstante, a escolha em se colocar ao lado dos trabalhadores mais invisibilizados – que constituem uma diversidade onde facilmente podemos reforçar seu anonimato -, seja por meio do lazer, ou pela ficção, pode ser potencialmente subversiva diante de jornadas de trabalho quase permanentes.

Dito isso, fico curioso para saber como Felipe pretende explorar outras formas de conexão com o mundo do trabalho nas ruas, intermediadas pelo desenho. Para isso, se a definição de millennials ainda nos cabe , talvez “o passante” precise ficar um pouco mais conectado com sua multidão, descobrindo as particularidades que a constituem.