Texto pela ocasião da exposição Sonho, queda livre, RV Cultura e Arte, Salvador, 2022.

Por Catarina Duncan

A questão do trabalho está diretamente relacionada à questão do descanso – esses gestos
tão cotidianos quanto universais se fazem presentes na produção de Felipe Rezende. Ao
observarmos suas obras, vemos trabalhadores, humanos e não humanos, em estado de
suspensão, seus corpos e estruturas levitam, derretem, se rompem e adormecem,
afirmando o direito ao tempo, ao ócio e ao sonho.

Em ‘Sonho, queda livre’, conhecemos a partir de pinturas, vídeos, desenhos e esculturas, a
vida cotidiana de trabalhadores de Barreiras, oeste da Bahia. Felipe compartilhou jornadas
de trabalho com Adriano, Claudio e Marcelo, em serviços para mineradoras, construção
civil, entrega ou agricultura. Diante da falta de perspectiva na prática artística, Felipe
trabalhou como ajudante de obra lado a lado com os amigos, aqui retratados em pinturas e
desenhos. Não se trata de olhar para o outro, e sim, para o próximo.

Na série ‘Tempestade, Bonança, Tempestade’, compartilhamos cenas de prazer, descanso e insurgências em pinturas a óleo sobre lona de caminhão. A narrativa começa antes do sol nascer e se recolhe às 18h, quando a paisagem muda de cor e anuncia o tempo do descanso. Nesses retratos estão pequenas vinganças, de trabalhadores que insistem em ‘cozinhar o galo’ na hora do almoço, ‘quebrar o brinquedo do patrão’, ‘arriar a bateria’ e compartilhar com a paisagem o sonho. Sonhamos coletivamente com o momento em que o trabalho não será mais hierarquizado por marcadores de classe, gênero e raça. Sonhamos coletivamente com o direito do trabalhador.

Em ‘A universidade e os under commons’, o teórico cultural Norte-Americano, Fred Moten fala sobre a necessidade de refletir em torno do trabalho e do trabalhar, do descanso e do descansar, sem diferença, para ele “o desregramento é necessário e as possibilidades de
criminalidade e de fuga que o trabalho sobre o trabalho requer”1. É preciso detectar os limites das regras que nos são impostas, para assim, poder transformar a ordem que nos rege. É preciso refletir sobre os conceitos de eficácia e eficiência como modos do pensamento capitalista e neoliberal aplicados à produção.

A proximidade que Felipe retrata ferramentas em desuso com ossos do corpo humano na série ‘ferramentas cansadas’ reflete como um ‘corpo de trabalho’ é visto e descartado como um objeto. O corpo é ferramenta e a ferramenta é corpo. Essa obra retrata um sentimento histórico, de luta e de resiliência, sendo testados e humanizados para abrir caminho a uma nova consciência subjetiva.

Em ‘O uso dos objetos’, o filósofo francês Nicolas Bourriaud, nos explica a diferença, cunhada por Marx, entre ferramentas naturais de produção (por exemplo, trabalhar a terra) e ferramentas de produção criadas pela civilização. “No primeiro caso, argumenta Marx, os indivíduos estão subordinados à natureza. No segundo, lidam com um “produto do trabalho”, isto é, capital, uma mistura de mão de obra e ferramentas de produção. Estes só são mantidos juntos pela troca, uma transação inter-humana incorporada por um terceiro termo, dinheiro.”2

Essa assemelhação entre mão de obra e ferramentas de produção regidas pelo dinheiro, sintetiza de forma direta o comentário de Felipe ao aproximar partes do corpo humano com
ferramentas de trabalho. Ambos, a serviço do mesmo capital, se movimentam na mesma direção, mas são levados a um ponto de exaustão que nos faz vislumbrar uma revolução, uma retomada de poder. Felipe retrata um sintoma e aponta para uma direção.

Na obra ‘A espera do raio verde’, vemos uma pintura de grandes dimensões, ao fundo o sol se põe no horizonte alaranjado, na terra, lona crua, remendada, estamos ao lado de corpos humanos, corpos planta e corpos ferramenta. Todos virados em direção ao sol, se permitindo apreciar a beleza da paisagem e do tempo que anuncia diferentes signos para cada corpo presente. Para alguns, seria o fim do expediente de trabalho, para outros, apenas uma mudança de iluminação e temperatura, e para outros, talvez nem faça diferença. Habitamos assim a terra, e fazemos parte dela.

As cores do céu são marcadores de algo maior, de uma força da natureza que conspira, guia e orienta nossos passos. Também seguindo o tema de paisagem e trabalho, vemos a
obra ‘o céu por testemunho’, um compilado de pinturas de passagem sobre restos de pneus usados, em relação ao vídeo ‘um lugar para encostar minha alma’, onde o corpo finalmente encontra o descanso necessário.

Já no vídeo ‘ampulheta quebrada’ nosso eixo é temporal, nas ruínas daquilo que ainda não foi construído, vemos máquinas transformarem montanhas inteiras em pó. O tempo geológico sendo afrontado pela ilusão de que tudo pertence ao homem. O filme é acompanhado de três pinturas menores, que citam Heráclito e T.S. Elliot e nos dizem, “O mundo mais belo é como um monte de pedras lançado em confusão” seguido de “Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó”. Os trechos revelam a situação absurda
diante de nós, de momentos em que o medo e a confusão imperam por um projeto de progresso que nos aniquila a todos. O tempo também é protagonista da obra ‘relógio de serra (against)’, aqui as ferramentas retomam como sujeitos que também contam as horas. Essa exposição nos atravessa em tempo e em luta, para uma compreensão de mundo em que voltamos a ser livres. No texto ‘Por que obedecer?’ de Andityas Soares Matos, ela nos afirma, “Chega. É hora de acordar dos sonhos da razão, do sono da razão, e perceber que a riqueza de uma civilização, que a riqueza de uma espécie – homo sapiens, em nosso
caso – não está naquilo que ela fez, mas propriamente naquilo que ela ainda não fez, naquilo que ela pode fazer…”3

Em uma época de dominação completa, o ser humano segue abrindo brechas e caminhos, para re-imaginar a vida em sua potência. Felipe Rezende se dedica em sua prática a esse
sonho, que é tão necessário e urgente quanto respirar, um sonho de justiça, por aquilo que ainda não foi feito. Quem sonha em queda livre, sabe que é preciso sonhar.