Texto pela ocasião da exposição individual Ladeira da Fonte, Mouraria 53, Salvador, 2019.

Por Ricardo Bezerra

Tudo que está exposto é fragmento, pedaço incompleto, parte de uma obra. Como
juntar as coisas?

As pinturas não estão numa forma-quadro tradicional – esse antigo dispositivo para criar a ilusão de uma “janela do mundo” – e esse é o motivo pelo qual a imagem não se virtualiza plenamente. A pintura se apresenta como coisa-pano, coisa-base branca, todo o material é revelado, revelando seu modo de fazer. A identificação desses rastros do fazer na pintura é a potência do trabalho e sua representação: tipos de trabalhos e trabalhadores que usam as mãos. Sem essa identificação dos “rastros do fazer” dificilmente as pinturas sobreviveriam à exposição. As pinturas, portanto, apresentam tanto quanto representam.

As obras fragmentos de lajotas e a luva operam num sistema metalinguístico redundante. Eles trazem em si essa involução, esse giro para dentro de si mesmos. O artista pinta imagens de trabalhadores que colocam lajotas para cegos nas próprias lajotas que esses trabalhadores colocam. O artista pinta na luva a imagem do trabalhador que usa a luva pintada.

Uma pintura numa tela não é suficiente para o artista representar sua experiência no mundo. A mesma pintura num suporte ordinário como um pedaço de lajota de cimento também não é suficiente para representar sua experiência no mundo… mas melhora; parece aproximar o objeto ressignificado dessa experiência, revelando-a na própria coisa. Aproximam-se por semelhança; instauram um encontro entre a representação e seu próprio mundo.

Talvez o simples deslocamento para o espaço expositivo das lajotas e da luva, o simples cobrir de tecido com a base branca já seriam suficientes para expor essa experiência no mundo e, nesse sentido, parece desnecessária a pintura nas coisas. Então por que estão ali pintadas? Por serem pinturas dos trabalhadores para os trabalhadores. Cada personagem ali é um, tem nome e endereço, ficaram amigos do Felipe, ele mandou as fotos dos trabalhos, chamou-os para a abertura.

Pode um artista imantar uma obra com a presentificação de um encontro? Esse é o barato dessa exposição: imantar as obras com a presentificação de um encontro no mundo.