Memória de mim

Luiz Braga
Agosto de 2016

Máscara, espelho e escudo, a fotografia se confunde com a minha vida. Através dela me reconheci capaz de enxergar o mundo e a mim mesmo na bucólica Belém dos anos 1970.

Desde o início em preto e branco, inspirado nos meus pais, me atraíam as pessoas simples, os lugares comuns onde se vivia o ritual ordinário de cada dia. As ruas da Belém colonial, as casas alegres da periferia, as margens encantadas dos igarapés, as procissões, o trabalho, o colorido da visualidade cabocla que descobri, já mais tarde, no caminho pela Estrada Nova (hoje Av. Bernardo Sayão) que me levava a faculdade de Arquitetura da UFPa.

A decisão de não pegar o Ita no norte e aqui desenvolver uma carreira, exigiu sacrifício e dedicação, afinal diferente de hoje, a informação e a técnica eram escassas e difícil de acessar. Os filmes Kodachrome era enviados para NY para revelar e demoravam quase 3 meses para voltar.

Fotografar em cores era, portanto, uma teimosia. Filho de médico decidir ser fotógrafo, outra até maior.

Essa inquietude é minha companheira e com ela construí um alfabeto de cores extraído dos erros e distorções dos filmes.

Foi nesse território que mistura desejo, lembrança, experimentação e técnica, que construí meu olhar, cercado pela cumplicidade de gente que via na fotografia um ato valorizador, como disse Susan Sontag em seu famoso ensaio. Personagens que me ofertavam o que tinham de mais valioso: a confiança, que se traduzia em liberdade e leveza. Atitude fundamental para o desenvolvimento não só da minha obra como de muitos autores paraenses.

Há cerca de 10 anos esse cenário embruteceu de forma radical com a violência se espalhando e rasgando esse delicado tecido, agora manchado pelo sangue dos jovens que morrem todos os dias, sem que eu tenha podido lhes fotografar a vida.

Uma forma de censura velada impede o fotógrafo de expressar e registrar uma cultura rica e pulsante, agora aprisionada por uma película impermeável e dura.

O vazio da perda dessa cumplicidade ancestral me levou ao exílio nas cenas noturnas das cidades do interior e à descoberta da série nightvision cuja técnica, mais uma vez subversiva, me aproximou da floresta que sempre estivera diante de mim e só agora tem lugar de destaque.

O verde-chumbo invade minhas imagens tomando lugar das cores pelas quais fui reconhecido.

Os olhos continuaram a tatear os lugares em busca de refúgio, já que me recusava a trabalhar como um correspondente de guerra.

Nesse instante minha intuição me conduziu a Ilha de Marajó, que costumava fotografar de forma eventual desde os anos 1980.

Lá reencontrei a leveza e a cumplicidade perdidas e o tempo vasto. Suor nos olhos, lágrimas de comunhão plena.

Uma espiral que se expande e contrai entre camadas de luz e vida.

Nessa exposição, que teve a cumplicidade de Diógenes e Elaine, minha esposa, está um mapa desse percurso e a alegre celebração de uma maneira de ser que eu julgava extinta.

O lugar do afeto, construído com histórias que talvez nunca virem fotos, mas me ajudaram a resistir, crescer e acreditar no humano.

Re-inocentar o olhar.