Ruptura da Trama Elisa Sighicelli

15/08/2024 - 28/09/2024

A Beleza dos Pormenores:
Um breve ensaio sobre Elisa Sighicelli

Lorenzo Fusi

Elisa Sighicelli (Itália, n. 1968) é artista e fotógrafa. Sua prática atenta-se à qualidade escultórica do espaço da luz. Sighicelli utiliza e desafia a fotografia, interrogando persistentemente os limites do meio e experimentando as suas possibilidades. A artista não está interessada na documentação fotográfica ou em transmitir uma narrativa clara através de seu trabalho, favorecendo a incorporação em vez da interpretação. Suas investigações no campo da fotografia habitam principalmente a fenomenologia da visão e, indiscutivelmente, seu trabalho só se materializa através do encontro físico com o espectador. Sighicelli também se interessa pela interação entre a ficção e a realidade, explorando as relações que conectam o que está na imagem com o que vive fora dela . Cada vez mais, a artista experimenta com diferentes materiais, trabalhando tridimensionalmente e desafiando a planicidade da fotografia tradicional.

Um interesse recorrente na prática de Sighicelli é explorar as correlações que existem entre luz, espaço e percepção, , preocupando-se constantemente com a desconstrução das convenções visuais e suas hierarquias. Em seu trabalho, a artista frequentemente assume pontos de vista incomuns, revelando aquilo que geralmente passa despercebido em toda a sua potência e poesia. A abordagem e a metodologia de Sighicelli são sempre contextuais ou responsivas ao local. Para cada exposição, a artista desenvolve projetos que parecem radicalmente diferentes uns dos outros, mas que ainda assim acompanham sua trajetória artística. Por exemplo, quando museus ou instituições culturais convidam Sighicelli para produzir trabalhos em resposta às suas coleções, a artista geralmente se encontra explorando os depósitos ao invés das galerias principais, procurando por aquilo que não é visto, e está esquecido ou subestimado. Através dessas incursões e investigações, Sighicelli sempre foca sua atenção nos detalhes, registrando discretamente a vida secreta dos objetos que se afastam ou resistem aos holofotes. Ao minerar essas histórias ocultas, Sighicelli subverte a ordem das coisas: o que é considerado importante torna-se menor, e o secundário ou aparentemente irrelevante é colocado em primeiro plano.

Há outro aspecto na prática de Sighicelli que deve ser levado em consideração. Ao literalmente trazer luz para espaços escuros, muitas vezes utilizando lanternas ou pontos de luz, Sighicelli captura associações inesperadas entre objetos que não poderiam ser lidos ou interpretados de outra maneira. Por outro lado, ao atravessar véus, camadas e opacidades, a artista encontra deleite onde menos se espera, na periferia do olhar. Sua prática pode ser melhor descrita como um tributo lírico à beleza dos pormenores, ou um monumento fenomenológico celebrando aquilo que é convencionalmente oculto ou marginalizado.

Das muitas ideias que discutimos quando Sighicelli foi convidada a expor novos trabalhos na Galeria Leme em São Paulo, várias estavam relacionadas à arquitetura modernista, uma característica distintiva e quase paradigmática da cultura brasileira. Dado o interesse de Sighicelli no poder transformador da luz e seu posicionamento estratégico da câmera no espaço mágico na encruzilhada entre a ficção sensorial e a representação fotográfica, o campo da arquitetura parecia ser o playground perfeito para buscar novas leituras do patrimônio modernista do país a partir de uma perspectiva incomum e desconhecida. O icônico Edifício Copan em São Paulo estava entre os prédios que mencionei para Sighicelli como um possível objeto de estudo ou tema. Especificamente, sugeri trabalhar com a rede protetora que impede que os mosaicos soltos da fachada do edifício caiam sobre os transeuntes. Achei que essa camada protetora permitiria à artista obter alguma distância e perspectiva. Essa estratégia agradou a Sighicelli, que frequentemente perfura diferentes camadas ou planos visuais para revelar o não visto e destacar o negligenciado.

O Copan no centro de São Paulo é tudo menos discreto ou “menor”. Este impressionante edifício construído entre 1957 e 1966, encapsula perfeitamente as ambições e a visão do alto Modernismo, com sua fachada sinuosa desenhada por Oscar Niemeyer para a Companhia Pan-Americana de Hotéis e Turismo (de onde se origina o acrônimo “Co-Pan”). Ele também resume o recente renascimento cultural e artístico da cidade, graças a iniciativas culturais como o Pivô Arte e Pesquisa, com sede no Copan e a presença de muitos artistas na área. Mesmo em uma metrópole em expansão como São Paulo, é difícil o Copan passar despercebido. Com seus quase 120.000 metros quadrados de área construída e 1.160 apartamentos, o Copan é uma cidade por si só, um microcosmo com seu próprio código postal, como uma cidade satélite separada. Portanto, a tarefa de Sighicelli não era documentar a beleza intrigante patente deste edifício e de seu povo – um exercício que muitos artistas antes dela tentaram – mas sim, direcionar nosso olhar e atenção de maneira diferente.

Naturalmente, para qualquer artista estrangeiro visitando o Brasil, – mesmo para Elisa Sighicelli, cuja família tem ligações profundas com o Brasil pois , sua mãe reside aqui- abordar uma arquitetura tão evocativa e caracterizadora é um exercício perigoso. O risco de se entregar a clichês associados ao turismo cultural e aos estereótipos é alto. Sighicelli conseguiu contornar esse risco ao inverter o ponto de vista, focando não no edifício em sí, mas no que pode ser visto de dentro do Copan através da rede protetora turquesa que, como um véu, protege sua monumentalidade brutalista imponente.

Visualmente, a rede protetora funciona como um sistema unidirecional, permitindo que as pessoas vejam de dentro para fora, agindo quase como uma barreira para aqueles que olham de fora para dentro. Ao longo dos anos, seções da rede rasgaram e sua grade lacerada ocasionalmente dá lugar a uma visão aberta. Como na Mátrix, a grade da rede é constelada por pequenos defeitos digitais que permitem que os residentes vejam para além de seu padrão geométrico. Enquanto escrevia essas notas, ocorreu-me que a rede protetora do Copan, em termos fotográficos, opera como um portal, nos permitindo entrar em outro mundo ou dimensão, como acontece em Através do Espelho de Lewis Carroll. É um dispositivo mágico pelo qual o espectador pode ver o mundo de maneira diferente e Sighicelli aproveita de seus poderes ópticos para criar um efeito surpreendentemente pictórico.

A primeira estranha ruptura criada pela rede é epistêmica, deslocando nossa atenção do sintagma “estereotípico” – um termo originalmente associado a ideias de ordem e composição- para “arquetípico” e “prototípico”, dois termos que se encaixam perfeitamente nas intenções dos desenvolvedores por trás da construção do Copan: criar um novo modelo arquitetônico no design urbano e, de certa forma, tentar montar um experimento social. O Copan incorpora a grandiosidade e as ambições do projeto modernista, semelhante à Ville Radieuse de Le Corbusier de 1930, mas as expressa em uma única arquitetura que é distintivamente sul-americana e universal ao mesmo tempo.

A segunda mudança que ocorre é sensorial. Devido à cobertura da rede, a superfície de concreto duro do Copan suaviza e recua, parcialmente escondida pela pele sintética da rede, que muda a cor do edifício enquanto também oculta suas características e contornos. A malha turquesa não só oculta, mas também destaca a arquitetura do Copan que, como resultado, parece estar se escondendo à vista de todos. A cor da rede é manipulada digitalmente em várias obras desta exposição. Quando a artista converte as imagens em seus negativos, por exemplo, o azul da rede torna-se rosa, tornando óbvio que o Copan (quando visto contra o horizonte de São Paulo) é como “o elefante rosa na sala”, um edifício que todos veem mesmo se fingir não estar lá, dissimulando sua presença por trás de seu sistema protetor.

Em vez de confrontar diretamente a silhueta imponente do edifício, Sighicelli posiciona astutamente sua câmera no espaço intermediário entre a fachada do edifício e a membrana protetora que o envolve. Esse dispositivo protetor é quase uma admissão da própria vulnerabilidade do edifício. A obsolescência dos materiais de construção é uma metáfora poderosa, questionando o legado do sonho modernista e suas ideologias subjacentes. Como um Colosso de Rodes contemporâneo, o Copan manifesta tanto sua força quanto sua fraqueza, parecendo assim totalmente humano e através dos buracos em sua vestimenta -a rede-, o edifício não pode deixar de nos olhar com sinceridade.

Ao longo dos anos, Sighicelli testou os limites da fotografia imprimindo nos mais variados materiais e desafiando os métodos convencionais de exibição. Seu interesse pelo espaço e arquitetura não se limita apenas ao que está na imagem, mas também se manifesta na maneira como ela apresenta seu trabalho ao espectador. De fato, suas imagens frequentemente se tornam objetos tridimensionais que habitam fisicamente o espaço da exposição. Cada vez mais, ela está operando no reino da escultura e da arte de instalação. Para sua primeira exposição na Galeria Leme, Sighicelli se afasta das paredes de concreto da galeria e exibe suas novas fotografias usando um sistema expositivo composto por formas escultóricas que são modulares, mas únicas em cada configuração. Estas são inspiradas pela grade do painel de concreto das paredes da galeria, mas também consideram a grade da rede protetora do Copan capturada em suas fotos, assim como a grade urbana e a estrutura celular da arquitetura da cidade de São Paulo. Esse sistema complexo de referências cruzadas reforça a relação entre as imagens de Sighicelli e o contexto em que foram criadas. Da mesma forma, o concreto se torna um elemento unificador para o projeto, presente no espaço da galeria, no edifício que inspirou as obras de arte e em toda a cidade.

A modularidade da apresentação e a forte presença de materiais de construção brutos na galeria, bem como nas fotografias, suavizam o efeito de muitas das imagens pictóricas de Sighicelli. Graças ao corte inteligente da artista e às suas manipulações digitais, o mundo que se vê através do Copan é mágico e diferente, com sua multiplicidade de pontos de vista apresentados pela artista nas obras e que também é refletido no sistema de exibição; assim, permitindo múltiplas visões e pontos de acesso conceituais. Muitas das grandes fotografias são impressas em tecido, forradas na parte de trás com tecidos em cores sólidas, criados propositalmente pela artista para combinar com os efeitos cromáticos das fotografias. As fotografias menores são impressas em papel para enfatizar a qualidade e a resolução da imagem. No geral, o que emerge dessa nova instalação de Sighicelli é uma sinfonia urbana de formas, estruturas e cores que capturam algumas das características essenciais da cidade sem detalhar uma única ou dominante narrativa.

Simultaneamente digital e analógico, este novo corpo de trabalho de Sighicelli é quase retro futurista na maneira como posiciona ambiguamente a fotografia na interseção de diferentes disciplinas, enquanto desafia sua linguagem e convenções. A exposição também nos pede para pensar sobre o tempo de maneira diferente. Suspensa, quase atemporal, a nova instalação de Sighicelli na Galeria Leme opera como uma cápsula do tempo. É “uma astronave / Que tentamos pilotar / Não tem tempo, nem piedade / Nem tem hora de chegar”[1].

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[1] “Aquarela” de Vinicius De Moares e Antonio Pecci Filho Toquinho © Universal Music Publishing Group.