Texto pela ocasião da exposição 7º Prêmio EDP nas Artes, Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, 2020.

Por Amanda Carneiro

Tradicionalmente associado a um papel preliminar no processo de produção, o desenho foi concebido como subsidiário na criação de trabalhos de arte, muitas vezes retirado da vista do público em favor da pintura ou escultura. Voltados para instalações específicas do local, baseadas em impressões gráficas que não desvinculam a experiência estética do objeto como forma autônoma ou apenas suporte, nos trabalhos de Felipe Rezende os desenhos não são parte preparatória mas linguagem direta, íntima e reveladora de sua expressão artística.

Criados em uma perspectiva bastante subjetiva, de um lado, e com base em um conjunto de interesses relacionados ao trabalho, suas ferramentas e detritos, por outro, os desenhos de Felipe se compõem sobre uma dedicada atenção a ações e gestos comumente despercebidos, naturalizados como parte regular da vida. O artista sugere que comportamentos e experiências, ao serem tratados como ordinários ou mesmo mecânicos, podem perder seu vigor reflexivo – estão por toda parte e, ao mesmo tempo, em lugar
nenhum. Alicerçado nas minúcias do dia a dia, que estão imbuídas de contradições, ele parece nos direcionar a um ato de afirmação: aqui está o valor. À medida que o valor se concentra cada vez mais no objeto, e a pessoa que o produz, não raro, é objeto, percebidacomo mais um instrumento, reforça-se o fluxo e a fragmentação do mundo social. Mas, diferentemente do que ocorre nesse processo de alienação, aqui ferramenta e pessoa se reposicionam em uma peça integrada com conotações convergentes, sem qualificar o trabalho como algo heróico, tampouco como supérfluo.

Os suportes para os desenhos de Felipe Rezende são frequentemente encontrados em suas caminhadas pela cidade, constantes canteiros de obras. Segundo ele, “o desenho impede que o artista pare. Andando cabisbaixo nas ruas eu acabo por encontrar coisas, eleger materiais e atribuir identidade aos detritos. Daí é que vem meu impulso gráfico”. Esses encontros e trocas de materiais e histórias assumem um terreno comum de experiências compartilhadas com pessoas e objetos, permitindo a consideração do efeito do cotidiano sob um teor profundamente político: amplificar vozes abafadas no barulho dos grandes centros urbanos.

Há ainda algo que retoma o brutalismo no seu inverso: os grandes blocos de concreto bruto são aludidos pelos seus escombros, agora personificados. Embora parte da estrutura, são descartados, matéria vista como barata, assim como o trabalho físico é relegado a baixas posições nas hierarquias de dominação intelectual. Esses trabalhos fazem parte de uma série intitulada “Inventário arqueológico confabulado”, em que capacetes, blocos de madeira ou de pedra, ossos e piso tátil ganham inscrições de trabalhadores da construção civil e, assim, sobrevida. Concentrando-se na forma do detrito, Rezende explora várias maneiras de inserção dos seus traços no espaço do objeto ou expositivo, nas quinas que podem remeter a encontros ou deslocamento, e nas bases que indicariam sustentação. Seus trabalhos operam simultaneamente uma exploração reflexiva da prática do desenho – a partir da relação entre figura e fundo – e das características e especificidades do meio, gerando uma relação produtiva entre um sistema de representação e sua execução material.