O Imaginário de Luiz Braga – a contra-Amazônia

Amazônia é cruel. Finge-se plenamente apreendida, em oferecida exuberância, por fotógrafos medianos e medíocres que acabam se expondo como meros clickadores de equipamentos óticos sofisticados. Esses seriam os “funcionários do aparelho”, na expressão de Vilém Flusser. O excesso amazônico então vira nada, uma copiosa fábrica do exótico apartado de significados. Estes fotógrafos não entenderam que o tempo teatralizante de Frisch se esgotou [1] . A Amazônia, depois de ser “reserva da biosfera”, é agora reduzida ao papel de “reserva de diferença”. Quando mais parecem exibir eficientemente a selva, mais distantes desses funcionários podem estar do fato amazônico. Deparamo-nos com o cartão postal em forma de ampliações, ensaios, back-lights e luxuosos “coffe-table books”. Aquilo que parecia ser a Amazônia proclamada é, de fato, um vômito fotográfico. Sendo menos que fala, este desajuste nunca será linguagem. Urge que se compreenda que esta natureza e gente são irredutíveis a dadas manobras e excursões. O escritor Milton Hatoum afirma que a Amazônia não tem fronteiras. Percebe, no entanto, que há uma delimitação “de fronteiras imaginárias”[2] . A produção de Luiz Braga é um antídoto àquele vômito. Ela metaboliza sua própria condição de possibilidade a partir de um ver-se precário e de um olhar precariamente em paradoxal operação com tecnologias óticas avançadas.

Na obra de Luiz Braga, a luta pela emergência da linguagem se trava em faixa estreita. Em A Câmara Clara, Roland Barthes afirma que a fotografia traz sempre consigo seu referente. Ora a sedução antropológica clama pelo registro documental da cena cultural e do espetáculo geográfico, ora atua como tensionamento do referente. Aí incide Braga: é-lhe imperativo agregar sentido à imagem friccionada na construção da poética. Sua escrita armou estratégias de aproximação ao “campo amazônico” e ao imaginário a ele sobreposto. Toma distância entre o perturbador estranhamento e a proximidade intimista com o aparato fotográfico. A paisagem, brutalizada ou diáfana, deixa o estatuto de lugar equatorial e iconográfico para adotar a tarefa de referente ativador da percepção fenomenológica. Braga situa o espectador entre aquele estranhamento desconfortável e a confrontação sedutora com o sublime.

Luiz Braga não “captura” a Amazônia – ao contrário, deixa-a escapar. Seu método refuta o exótico e o eixo surrealista-fantástico da Antropofagia ao filme Fitzcarraldo de Werner Herzog. Ele desmonta expectativas para precipitar inesperados processos de des-reconhecimento. Sua obra resiste à vocação descritiva da fotografia ao transcodificar o verde. Dando o tom, a selva institui expectativas de cor. Fixa suas nuances na retina e no inconsciente ótico sobre a Hiléa. Nada é tão contra-amazônico como um panorama artificioso ou uma paisagem anti-natural. Braga perverteu o olhar fitográfico. Esse é seu “beijo de Judas”, o termo de Joan Fontcuberta para os hiatos entre fotografia e verdade, para os desajustes entre imagem e experiência [3].

Luiz Braga trama a Amazônia como um campo de luz, abundante solaridade e jogos de penumbra dentro da câmera escura. A partir dela burla expectativas e transgride a representação do lugar. Recorre ainda à tecnologia da “night vision”, aparato ótico-militar usado pelas grandes corporações das comunicações para a transmissão de notícias de conflitos bélicos em verde-penumbra, portanto fábrica de uma guerra asséptica “sem sangue” (como nas invasões americanas no Irã e no Iraque). Na desmontagem da tecnologia, Braga intensifica certo estranhamento primal com infiltração de incertezas visuais. Nunca usa filtro ou flash. Sabe que à noite, a iluminação “urbana” (i.e., luz de mercúrio), distorcida pelo filme calibrado para “day light”, produz verde. Produz a amazonidade falsa. Certa fotografia de Braga desterritorializa o olhar geográfico ao subverter os meios fotográficos para produzir ineficiência e erro. Quase como uma notícia da guerra, suas paisagens em night vision parecem relatos fantasmagóricos de um certo Médio Oriente.

No final dos anos 80, Luiz Braga inicia uma torção da câmera, até então eminentemente máquina antropológica. A visibilidade desta economia simbólica implicaria em transcodificar imagens. Braga propõe aos espectadores uma tarefa de decifração. Quanto mais o desenvolvimento do aparato fotográfico promete a apreensão fiel do real, mais ele produz um corpus contra-amazônico, que é a forma de superação do olhar opaco do funcionário do aparelho ao qual já nos aludimos. Diz Flusser que “decifrar fotografias implicaria, entre outras coisas, o decifrar das condições culturais dribladas”[4] . No discurso de Hatoum, analisa o filósofo Benedito Nunes, há distância e proximidade. Tal distância se define como “desterritorialização”. O esforço de Braga é, pois, fazer com que o referente se despregue de sua fotografia para que se experimente uma contra-Amazônia. Por sua vez, o fotógrafo extraterritorializa o olhar, pois essas paisagens e lugares já não se reconhecem como Amazônia ou Belém. Tudo se localiza para além da geografia. Essa não-Amazônia é o território visual definido por sua fronteira imaginária.

A fotografia de Luiz Braga se recusa a incidir em fantasias românticas ou ilusões de inocência virginal, de que trata criticamente Benedito Nunes [5]. Entre os inúmeros vetores da produção de Braga, estão estas infra-Amazônia e contra-Amazônia aqui constatadas. Poderíamos também dizer do fotógrafo, o que Nunes diz ainda de Hatoum: opera em local bem delineado, pintado com “tintas” que não são regionalistas. A partir da tradição do fotopictorialismo, que revigora a seu modo, Braga, por seu turno, converte a luz em cor. Em sua criteriosa estrutura cromática, a natureza ou a “visualidade amazônica” são desviadas pela alta tecnologia ótico-fotográfica e por suas “distorções” calculadas. O pintor Emmanuel Nassar, seu companheiro de rota [6], aborda um “Brasil profundo”, com valores plásticos e padrões vernaculares situados fora de qualquer cânon dos centros e classes hegemônicos. Nada disso dista do conceito de “gueto” de Cildo Meireles, como âmbito de intensa concentração de energia simbólica, tal qual um buraco negro. Para Braga, a fotografia propicia “a experimentação do invisível [7], porque o filme vê o invisível” . A apreensão da vida cotidiana e simbólica da gente amazônica remete a construída fotografia de Luiz Braga à delicadeza e intensidade da pintura de gênero holandesa do século XVII. Nesse eixo, a escavação dessa infra-sensibilidade demanda transparência, através da caixa preta da fotografia, para furar o cerco das hierarquizações culturais.

Sem melancolia, Luiz Braga percebe que as tradições na região têm sofrido desmontagem e alterações radicais ao ritmo do avanço da modernidade, marca da região desde o ciclo da borracha no século XIX. No eixo Manaus-Belém, se o romance Relato de um Certo Oriente de Milton Hatoum se transforma, para Benedito Nunes, na busca de um tempo perdido, certa fotografia de Luiz Braga é a construção com um tempo em risco. A aceleração de um antigo tempo antes alongado simula uma pressa no destiempo de Lezama Lima. No quadro de expansão do capitalismo internacional e das atividades econômicas predatórias da natureza, o capitalismo selvagem cobra seu preço. O que representarão essas imagens de Luiz Braga se um dia o risco se sobrepuser à resistência e se o vernáculo e as festas populares do Pará não sobreviverem ao aniquilamento das diferenças? Perigosamente, essa fotografia não se obriga a ser documento eficiente para a memória coletiva. Refuta a condição de arquivo. Sua única promessa é permanecer como presença poética concreta.

Paulo Herkenhoff
Rio de Janeiro, abril de 2005.

Notas:

[1] Fotógrafo suíço que viajou pelo Alto Amazonas por volta de 1865 documentandogrupos indígenas. Na fotografia “Ìndia Teaina no Rio Negro, Manaus”, A. Frischconstrói uma pose européia, em que a modelo fica artificiosamente à européia, com as pernas de fora da saia e segurando uma moringa.

[2] Entrevista a Aida Hanania. Collatio 6 – Universidad Autónomade Madrid e Universidade. de São Paulo. ANOIV, no. 6  – 2001.

[3] El beso de Judas, fotografia y verdade.Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1997, p. 79.

[4] Filosofia da Caixa Preta. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002, p. 20.

[5] Ementrevista a José Castello. “Benedito Nunes ensina o caminho de volta”. Caderno 2, O Estado de S. Paulo (retirado do site www.secrel.com.br/jpoesia/castel06.html – 15k). Todas as citações do professor Nunes no presente texto foram retirados dessa entrevista.

[6] Em Belém, devem ser mencionados o importante conjunto de fotógrafos, bem como outros artistas plásticos e uma literatura de porte nacional.

[7] Em conversa com o autor em Belém em 25 de março de 2004.