Taipa -Tapume (curadoria de Tomás Toledo) Alexandre Brandão, Ana Mazzei, Beto Shwafaty, Bruno Baptistelli, Fábio Tremonte, Francesco Di Tillo, Héctor Zamora, Jaime Lauriano, Lais Myrrha, Pablo Accinelli, Sandra Gamarra e Sandra Nakamura

28/08/2014 - 04/10/2014

TAIPA-TAPUME

Curadoria Tomás Toledo

Artistas: Alexandre Brandão, Ana Mazzei, Beto Shwafaty, Bruno Baptistelli, Fábio Tremonte, Francesco Di Tillo, Héctor Zamora, Jaime Lauriano, Lais Myrrha, Pablo Accinelli, Sandra Gamarra e Sandra Nakamura.

A exposição coletiva Taipa-Tapume pretende utilizar a história do prédio da Galeria Leme – projeto de Paulo Mendes da Rocha que foi construído, demolido e depois reconstruído em outro terreno – como mote para investigar o processo de desenvolvimento urbano da cidade de São Paulo, que é pautado por ciclos de construção, demolição e reconstrução, e a forma como a cidade lida com sua memória.

Entre o século 19 e o 20, São Paulo deixou de ser uma vila com ares coloniais, feita de taipa e de menor importância no cenário econômico nacional, para se tornar uma rica cidade cafeeira e, depois, um polo industrial, comercial e financeiro. Estes momentos históricos e urbanísticos foram sobrepostos pelo desenvolvimento urbano e configuraram a cidade de hoje.

Como nos aponta o historiador Benedito Lima de Toledo, no livro “São Paulo – três cidades em um século”, “a cidade de São Paulo é um palimpsesto – um imenso pergaminho cuja escritura é raspada de tempos em tempos, para receber outra nova (…)”.

Para articular estas proposições, tomo o exemplo do Pátio do Colégio, sitio arqueológico onde foi construída a primeira edificação da cidade de São Paulo, em 1554, primeiramente em pau-a-pique e depois em taipa de pilão. Esta construção abrigava um colégio de jesuítas e uma igreja. Com a expulsão dos jesuítas do Brasil, em 1759, o local passou a ser utilizado pelo poder público como sede do governo da província de São Paulo até 1908. Neste período o prédio que abrigava o colégio foi demolido para dar espaço a um palácio neoclássico e a igreja sofreu um desmoronamento. Em 1954, em razão das comemorações do quarto centenário da cidade estas edificações foram completamente demolidas para a construção de uma réplica, em concreto armado, do que se imaginava ser o prédio original do colégio e da igreja.

Esta dinâmica de ocupação do solo revela a maneira com que São Paulo lidou e lida com seu passado e como constrói suas narrativas históricas, evidenciando as forças de poder que moldam o tecido urbano e social da cidade.

Tendo em vista este recorte histórico e esta perspectiva crítica, a exposição articula-se em quatro núcleos de discussão: o prédio da galeria Leme, processos de construção e desconstrução, o desenvolvimento urbano e arquitetônico de São Paulo e, por fim, a especulação imobiliária e as técnicas construtivas.

No primeiro núcleo, o trabalho “Sem Título”, de Jaime Lauriano – um espelho duplo encaixado entre dois blocos de concreto – reflete a figura do espectador, inserindo-o na imagem virtual que os espelhos produzem da própria Galeria. Desta forma, os espelhos modificam a apreensão do espaço, colocando em análise a relação entre o sujeito e a arquitetura do local. Ainda seguindo nesta investigação, a pintura “Sem Título”, de Bruno Baptistelli, apresenta uma composição gerada por elementos estruturais arquitetônicos, criando uma imagem que propõe um novo campo espacial, mas que neste caso não se dá pela imagem especular, mas sim por uma superfície opaca.

Os trabalhos “Algunos usos prácticos para el arte en desuso”, de Sandra Gamarra, “narrativas cotidianas_Brasil01”, de Bruno Baptistelli e “Algo sem espessura”, de Sandra Nakamura, evocam a memória do primeiro prédio da Galeria, que foi demolido, junto com todo quarteirão, para construção de um edifício, sede de uma construtora. Apropriando-se dos aspectos físicos do antigo prédio, Gamarra reproduz o módulo do concreto utilizado na primeira edificação, que tem um tamanho ligeiramente maior do que da construção atual. Já Baptistelli faz uso da linguagem fotográfica para reproduzir o edifício da construtora, apresentando-o em um enquadramento típico da fotografia modernista, dando à cena uma falsa sensação de valor histórico. Nakamura também utiliza a ligeira diferença de tamanho entre os dois edifícios como mote para realização de uma intervenção site-specific. Utilizando-se de um verniz transparente, realiza uma marcação na calçada da Galeria que revela o tamanho do prédio anterior, evidenciando semelhanças e diferenças entre as duas edificações.

O segundo e terceiro núcleo desenvolvem-se dialeticamente de forma a articular os processos de construção e desconstrução de tecidos urbanos – elaborados por contínuas camadas do passado sobrepostas pelas ações do presente – com o desenvolvimento urbano e arquitetônico da cidade de São Paulo, marcado pelo descaso com o passado e pela agressividade do mercado imobiliário.

“Breve cronografia dos Desmanches”, de Lais Myrrha, elaborado originalmente como um livro e aqui apresentado em uma versão de parede, é um compêndio de imagens que apresentam diversas categorias de demolições, ruínas, desabamentos e situações de abandono. Cada imagem é acompanhada por um verbete – ora em tom ficcional, ora documental – e evocam a falência de projetos ideológicos e políticos, a incapacidade de se preservar os rastros físicos do passado e a possibilidade de reescritura de narrativas históricas.

Dando continuidade a esta investigação, “Momentum # 3” e “Momentum # 4”, de Francesco Di Tillo – fotomontagens que sobrepõem cartões postais de cenas do pós-guerra europeu com imagens de demolições em regiões de São Paulo – articulam, em duas camadas de imagem, dois momentos temporais e duas categorias de ruína.

Desenvolvido inicialmente no formato de livro, “A vida dos centros”, de Beto Shwafaty é um projeto fotográfico e documental que apresenta três momentos distintos de São Paulo com imagens de arquivo e textos com memórias e fatos históricos. O crescimento da cidade, com seus devidos percalços, é narrado a partir do deslocamento do centro financeiro e comercial da região central para avenida Paulista e Berrini.

“Ghost bricks”, de Ana Mazzei, é um agrupamento de pedaços de madeira recobertos por camadas de joss paper, um papel dourado utilizado em cerimônias chinesas para evocar os ancestrais já falecidos. A simbologia do joss paper somada à configuração das peças, que estão dispostas no chão de forma a emular a vista aérea de um tecido urbano, nos sugere pensar sobre as camadas, tanto construtivas quanto históricas, que compõem uma cidade.

Sandra Gamarra apropria-se da fábula “Os Três Porquinhos” para elaborar um livro ilustrado onde adapta a narrativa original para o contexto de São Paulo. A casa de cada um dos porquinhos representa simbolicamente três estágios do desenvolvimento urbano e social da cidade, aproximando a narrativa ficcional da narrativa histórica.

Em uma instalação sonora site-specifc, Bruno Baptistelli apropria-se do áudio de um trecho da música “Da ponte pra cá”, do grupo Racionais MC´s, que é acionado com a passagem do público pela passarela que liga os dois blocos da Galeria Leme. O trabalho estabelece uma relação metafórica entre os dois espaços do edifício com o posicionamento geográfico do Butantã, onde a Galeria está localizada. A passarela separa os escritórios do acervo, já as pontes sobre os rio Pinheiros separam o centro expandido de áreas periféricas da cidade. O conteúdo do trecho – “Não adianta querer, tem que ser tem que pá, o mundo é diferente da ponte pra cá!” – aponta para cisões geográficas e sociais de São Paulo.

Nos trabalhos “Tijolo 9 furos” e “Paulista, da série Circunferências”, Héctor Zamora utiliza-se de materiais de construção típicos das técnicas construtivas brasileiras, que, de certa forma, resistem aos constantes avanços tecnológicos do campo da construção. No primeiro caso, uma composição de tijolos vazados com suas quinas extraídas; no segundo caso um círculo com telhas paulistas.

“Adobe”, de Alexandre Brandão, é um conjunto de peças de barro cru moldadas em formas de sabonete dispostas em uma mesa de madeira. O formato dos objetos se aproxima da aparência de tijolos, alguns se apresentam intactos, outros corroídos pela ação da água. Esta apresentação dá ao trabalho um aspecto arqueológico, podendo ser lido como resquícios de um passado lavado pelos processos históricos.

Estes três trabalhos, aqui apresentados sob a arquitetura de concreto armado de Paulo Mendes da Rocha, operam como signo das contradições de São Paulo, uma cidade em constante embate entre seu passado de taipa e um presente pautado por um falido projeto desenvolvimentista.

O quarto núcleo, voltado para problematização da especulação imobiliária, propõem uma contraposição entre o imaginário criado pelos lançamentos imobiliários com os desdobramentos sociais e urbanísticos que estes provocam.

Tanto na série “Delírio tropical (à venda)”, de Fábio Tremonte, quanto no vídeo “sem título #3 (a casa)”, de Jaime Lauriano, as expectativas criadas pelas estratégias de vendas de imóveis são confrontadas com a realidade.

No primeiro caso, frases de campanhas publicitárias são extraídas e descontextualizadas de encartes de lançamentos imobiliários e reescritas com aquarela em folhas brancas de papel. Destituídas de aparatos publicitários, logos e maquetes virtuais, as frases vendedoras perdem seu sentido e revelam sua farsa.

Já no segundo caso, imagens de demolições de quarteirões na região da Luz – fruto de um discutível projeto de revitalização urbana colocado em prática pelo poder público – são justapostas ao áudio de programas televisivos de venda de imóveis. Esta sobreposição de discursos pode nos apontar para as complexas relações entre o investimento de capital público nas ações de desenvolvimento urbano de São Paulo e os interesses do capital privado.

Em “Fuera de campo”, série de trabalhos de Pablo Accinelli, estas relações são evocadas a partir do potencial de projeção da imaginação que os anúncios de venda de imóveis em jornais impressos produzem no leitor. A mera descrição textual do número de cômodos de um apartamento já é suficiente para se imaginar as feições do imóvel, a luz do local e a sua vida nele. Esta construção imagética é ocasionada pelo texto, mas é o que está fora do texto que fornece as bases para uma elaboração ficcional. Porém, o espectador do trabalho não tem acesso aos textos dos anúncios, pois as páginas dos classificados são reproduzidas por uma técnica de frottage, gerando uma imagem esbranquiçada, que instaura a possibilidade de um novo campo de construção ficcional.

Se a taipa, ou em última instância o barro, foi a matéria fundadora das edificações de São Paulo, os tapumes, telas de proteção, ferramentas e materiais de construção foram sua constante.

Pavilhão, de Jaime Lauriano, é um trabalho composto por uma bandeira de tela fachadeira bordada, sustentada por um prego e equilibrada com um martelo e um prumo. Esta estrutura, feita com materiais de construção, é fixada no espaço expositivo de modo que seu peso, com o passar do tempo, danifique a parede que a sustenta. Instaurando, desta forma, uma contradição entre a intenção construtiva e destrutiva, que se apresenta como uma constante no desenvolvimento urbano de São Paulo.

Os trabalhos apresentados estruturam os núcleos e suas possíveis associações, propondo relações entre a ideia de construção como edificação material, com a ideia da construção como elaboração conceitual. Desta forma, cria-se um campo crítico para confrontar os processos de formação da paisagem urbana com a elaboração de narrativas históricas e ficcionais sobre a cidade de São Paulo.

Agradecimentos: Galeria Jaqueline Martins, Galeria Luisa Strina, Galeria Pilar, Luciana Brito Galeria, Manoel Macedo Galeria de Arte e Wu Galeria.