Sandra Gamarra por Carlos Trivelli

Na  parte inferior do degrau,
à direita,
vi uma pequena esfera furta-cor,
de quase intolerável fulgor.
Borges, El Aleph
Uma visão rápida à situação atual põe em evidência duas tendências importantes no campo da arte. Por um lado, uma crescente profissionalização dos espaços, instituições, mercados e finalmente da produção artística em si. Por outro, um desenvolvimento dos espaços voltados à estruturas mais complexas e abrangentes. É sobre a mesma base de ambas tendências que a proposta do LiMac adquire sentido e contundência.
No primeiro caso, a tendência mundial das galerias, centros de arte, museus, feiras e bienais voltadas à profissionalização estabelece um padrão que põe em evidência nossas carências locais. A falta de espaços devidamente articulados e instituições que possibilitem uma racionalização e assimilação da produção local em termos de uma construção da imagem presente e das condições para que a mesma realize uma passagem à sua conversão em memória e substrato de uma produção futura, foi identificado, em nosso meio, pela ausência de um ha muito tempo prometido e até agora quase utópico museu de arte contemporânea. Neste sentido, o LiMac evidencia esta carência e sinaliza com certeza e ironia aquilo que nos falta.
No segundo caso, a tendência constante a desviar estes espaços de um sentido das obras individuais como um objetivo da produção para um horizonte do discurso artístico em direção a espaços mais complexos, com uma série de obras, exposições completas e até conjuntos de exposições – como é o caso das bienais articuladas tematicamente, por exemplo – abrem a possibilidade de considerar o LiMac, ao museu em si, nos mesmos termos, ou seja, como uma instância de enunciação, como uma obra de arte em si mesma.
Ambas tendências, como resulta evidente, confluem para fazer do LiMac uma dupla necessidade: por um lado como espelho para  que possamos ver nossa nudez institucional e por outro como imagem da complexidade e de uma classe que pode e deve adquirir ao menos parte da criação contemporânea: se não existem os espaços e nem os discursos capazes de gerar-los, esta é precisamente a tarefa (ou pelo menos uma das tarefas urgentes) da criação atual.

Espaço de Apropriação

Este não obstante, o projeto do LiMac não é simplesmente um jogo engenhoso nem mais um discurso crítico. Sua solução, por dizer de alguma maneira, não reside somente na contundência da crítica ou da evidência das carências trazidas à tona. Ao contrário, se assenta em uma sorte de condensação do sistema da arte que faz possível abordar tudo em um mesmo espaço. Um pequeno aleph do universo artístico. (na literatura, o escritor argentino Jorge Luís Borges denomina de “Aleph” o ponto de onde é possível se ver todos os outros pontos do universo)
Frente às tendências que buscam expandir os domínios da arte, levar a arte para as ruas ou intervir artisticamente em espaços públicos com o afã de estender um sistema de valores estético e crítico a outras esferas da sociedade, o LiMac trabalha melhor voltado para dentro: ao invés de apropriar-se de novos espaços, estabelece, no mesmo seio das instituições artísticas, um espaço de apropriação do sistema da arte em seu conjunto.
O LiMac já tem sido um museu dentro de um museu e agora, tal como em sua fundação em 2002, volta a ser um museu em uma galeria. Se apropria do espaço das salas de exposição como qualquer obra, mas ao fazer-lo, e sem por isso deixar de ser um museu, se converte em objeto – se tematiza a si mesmo – com o que exerce uma espécie de força gravitacional que arrasta tudo que está fora do interior destas salas: Aqui estão as obras, mas nestas obras há reproduções de outras obras. E nas reproduções, estas obras originais e os olhares que as contemplaram. E estão as instituições que expuseram as obras e quem as converteu em publicações. E estão também os que fizeram as obras e as reproduções. E com eles o sentido tanto de fazer as obras como de haver-las exposto e reproduzido. O mundo da arte inteiro se reúne aqui, entocado, atrás destas obras. Ainda que nos perguntemos se somos nós que nos escondemos atrás delas para espiar este mundo complexo que está lá fora, aqui dentro.
E este efeito de condensação abarca cada vez mais. Assim o atesta a diversidade de procedência destas novas aquisições, a relevância que adquirem no contexto desta mostra as linguagens as quais apelam, os interesses e questionamentos que evidenciam, e há que dizer, o caráter no final das contas insondável de seu ser obras de arte. Também o atesta o projeto arquitetônico surgido do interesse dos membros do estúdio Produtora no LiMac, uma concepção do espaço do museu como algo que se experimenta mas cuja moldura, cuja arquitetura,  não se pode ver, como o próprio LiMac.

Longe da Entropia

Para qualquer um resulta evidente que não é a mesma coisa ver uma obra reproduzida em algum meio. Uma série de características ( que não tem a ver necessariamente com a reprodução mecânica ) fazem de ambas experiências algo diferente. Seguindo os mesmos cânones, haverá que concordar ( se é que a experiência não resulta suficiente) que também não é o mesmo ver uma obra que reproduz o original como sua reprodução. Não é necessária uma longa reflexão para constatar que aqui não há entropia. O que poderia parecer uma inevitável gradiente de perda de aura resulta rebatida pela experiência. Nestas reproduções não há entropia nem perda de aura, porque nelas se instaura uma nova legitimidade que, no momento em que perde – num certo sentido- realidade, ganha, em outro, uma realidade diferente, ainda que conectada com a original. Trata-se de uma passagem, uma nova encarnação, música nova feita em parte – mas só em parte – do eco de melodias anteriores.
O gesto, o pincel e a mão devolvem realidade ao objeto, a imagem virtual, mas que neste momento trasladam, por dizer de alguma maneira, seu centro de gravidade , para que já não falem apenas de si mesmas o daquilo que falam originalmente, senão que incluam também no que conseguem dizer, o rastro do caminho que as há levado a ser – novamente – o que eram, mas que sob o enfoque de que agora, de maneira totalmente nova, são parte do LiMac.
É neste ponto que no qual mais claramente o LiMac, como um projeto institucional que assume um discurso crítico se conecta com aquilo que parecia que havia deixado de lado: aquela concepção do artístico endividada com a representação, com  a precisa delicadeza da destreza manual, com o sentido do discurso artístico concebido ao interior e somente ao interior dos limites do bastidor de um quadro. Esta ênfase no ato de pintar como um espaço e tempo próprios, em princípio alheios à institucionalidade, à crítica aos discursos ( se tal coisa fosse possível) é um convite a outra forma de compreender a experiência artística: a da contemplação. Ou seja, uma dimensão na qual não importa do quê se apropriam os quadros nem se fica resumido entre pincelada e pincelada, porque o que importa é a pincelada em si mesma e a dimensão que abre à consciência.

O museu que não podemos ver nos arrasta ao seu interior, nos faz participantes da necessidade de sua existência e do que sua carência nos faz padecer, nos mostra obras que não vamos ver e nos abandona aí, a contemplar-las, como para deixar-nos pensando qual é nosso lugar nisto tudo….

Carlo Trivelli